segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Contagem

(Minas Gerais, 2010, 18`) Direção: Gabriel Martins e Maurílio Martins. 



Contagem, curta dos diretores mineiros Gabriel Martins e Maurílio Martins, aborda em sua trama um assassinato que poderia, caso Martins tivesse optado por uma narrativa linear, cair em uma mesmice que já não é novidade no cinema contemporâneo. Porém, o diretor preferiu uma narrativa fragmentada, que, utilizando o som e a montagem não-linear como fio condutor, nos apresenta a história do crime a partir do ponto de vista de quatro personagens: Ana; seu pai, um senhor de saúde frágil; Marcos, namorado de Ana; e uma conhecida desta, Rose, cuja participação no curta é a única inserção mal utilizada dentre os personagens principais (voltarei a esse ponto nas linhas abaixo).

De forma inteligente, o filme faz valer a utilização do som diegético (aquele interno, próprio do ambiente onde ocorre a ação) para gerar pontos de identificação entre o espectador e a obra. Desde um comentário trivial, feito por Marcos de dentro de um carro, passando pelo barulho da turbina de um avião, até a transmissão televisiva de um jogo de futebol, a montagem usa o som para ligar a trama de modo a tornar compreensível a ordem dos acontecimentos.

Para tanto, os diretores optam por apresentar fatos que acontecem paralelamente, como a conversa entre Rose e seu amante dentro de uma loja; a caminhada triste de Ana em direção a sua casa para cuidar de seu pai doente e o desfecho final com o assassinato citado. Dentre essas passagens, apenas a utilização do diálogo entre Ana e Rose que soou inútil, uma vez que não houve uma continuidade no tempo real da história. Prefiro acreditar que ela serviu de modo a gerar uma reflexão sobre o possível tempo perdido por Ana em tal conversa, uma vez que ele se mostrou valiosíssimo para ela alguns minutos depois quando esta se encontrava no lugar errado na hora errada.

Nas cenas externas, o curta opta pela câmera na mão, que segue as costas dos personagens de modo inquieto, tornando mais impactantes os momentos cruciais que eles estão prestes a viver. Nas internas, a câmera é sempre fixa, principalmente na sequência em que Ana cuida de seu velho pai. A sensação de desconforto ao observar a forma difícil como o idoso cumpre tarefas que seriam banais para uma pessoa saudável, como se alimentar, por exemplo, é palpável pelo modo estático como a imagem permanece inerte durante a cena.

Momento de sonho: o casal antes da decisão preciptada
De modo sutil, o diretor insere flashbacks para nos apresentar ao relacionamento entre Ana e Marcos. Sabemos, através da tristeza e do rosto preocupado de Ana ao conversar com Rose, que o namoro não passa por um bom momento. Um namoro que, no passado, vemos que era embalado por carinhos e planos do casal em viver uma vida bucólica no interior (o que, na mente limitada de Marcos, é definido por ficar “ensinando o bacuri a matar passarinho, empinar pipa e jogar bola”). Porém, a situação familiar atual dela mantém esse sonho afastado. E é esse detalhe que amarra o final da trama e nos apresenta o motivo para o acontecimento que a encerra.

Por unir de maneira primordial a técnica ao modo de se contar uma história, Contagem é um filme para ser visto com atenção. Sem citar que o título é de uma sutileza ímpar, uma vez que tanto pode significar o nome do local onde se passa a trama como, justamente, uma contagem regressiva para o que vai acontecer.      

Oma

(2011, 22´) Direção: Michael Wahrmann.

A relação entre jovens e idosos nem sempre acontece de modo natural. A obrigatoriedade que os laços familiares impõem aos netos em visitar seus avós pode ser incômoda e tornar algo que poderia ser prazeroso, um exercício de paciência. Oma, curta de Michael Wahrmann (que já havia abordado o tema em seu trabalho anterior, Avós), aborda a relação do próprio diretor com as visitas que precisou fazer à sua avó (ou Oma, em alemão, língua mãe da idosa) no último ano da vida da senhora, que já tinha mais de 90 anos na ocasião.

O tom amador do filme, que foi gravado com uma câmera semi-profissional e em preto e branco, não atrapalha a proximidade que o espectador passa a ter com aquela senhora que está convencida que não vai viver por muito mais tempo. Diariamente, ao receber a visita do seu neto, ela pergunta a ele quando será sua viagem (o rapaz estava de mudança para o Brasil) e demonstra querer aproveitar aquela presença ao máximo.

Oma é um filme que aborda essa idéia de despedida familiar de maneira delicada. Já praticamente cega, a senhora afirma não conseguir enxergar quase nada. Para ela, tudo está cinza ou preto. De forma inteligente, Wahrmann coloca o espectador no mesmo mundo em que vive Oma. As imagens abusam de uma claridade extrema que, em questão de segundos, fica escura voltando a ficar clara. É justamente dessa forma que os olhos da senhora de quase cem anos enxergam a realidade.  

Confesso que o filme gerou uma identificação em mim por conta da experiência recente que tive com o falecimento de meu pai, em julho passado. Devido a um câncer e aos nocivos efeitos da quimioterapia em seu corpo, ele se tornou senil e caquético aos 57 anos, completamente dependente de seus familiares para as tarefas mais simples do dia a dia, como levantar da cama ou ir ao banheiro. Diariamente eu o visitava imaginando se aquela seria a última vez que eu o veria por conta da evolução fatal da doença. Ao ir embora, o observava triste em sua cama, sem nem um traço do homenzarrão que costumava me jogar pra cima na infância.

E ver a cabecinha de Oma ou seus dedos longos acenando do lado fora do vidro da porta do elevador acabou por ser a cena que melhor representou aquela experiência triste de despedida. Uma despedida que, no caso da senhora, aconteceu de modo natural, uma vez que quase um centenário de vida é algo que poucos podem usufruir. Meu pai, morto antes dos 60 anos, não foi um desses felizardos.

Mens Sana in Corpore Sano

(Pernambuco, 2011, 21´) Direção: Juliano Dornelles

  


Aqui está um exemplo de filme feito de modo eficaz em todos os seus cortes e planos. Contando uma história que possui elementos do cinema trash, com alusões a diretores como George Romero e Dario Argento, o filme do diretor pernambucano Juliano Dornelles (menção honrosa no Festival Internacional de Locarno, na Suiça), impressiona pela simplicidade do roteiro e pelo modo eficaz como ele foi executado. Com cenas construídas de modo a apresentar a trama ao espectador apenas com imagens e sons, sem a necessidades de diálogos expositivos ou voz off, Mens Sana in Corpore Sano, aborda a dedicação de um fisiculturista (vivido pelo estreante Flávio Danilo) ao seu esporte até o momento em que sua sanidade é questionada.

Com paletas carregadas em cores quentes (azul e vermelho, principalmente), o curta coloca o espectador em um universo de imagens sufocantes, no qual o ambiente claustrofóbico e escuro da academia onde o personagem central malha é sempre exposto como um lugar onde apenas ao atleta cabe ficar. A sensação de sufoco para quem assiste só é sanada em breves takes, onde vemos Danilo correr em uma estrada com a bandeira do Brasil hasteada ao fundo, uma rima visual elegante que voltará a ser apresentada na cena crucial do filme.

Sendo um filme bastante sensorial, o diretor Dornelles utiliza de modo pertinente a relação entre os aparelhos da academia e o corpo musculoso do atleta. Vemos constantemente as partes móveis dos aparelhos sendo exibidas em relação aos músculos do corpo de Danilo e o suor do atleta é filmado numa relação direta ao óleo que lubrifica os equipamentos. A dedicação do marombeiro impressiona. A direção de arte, numa eficiente forma de transmitir a informação ao espectador, ilustra a casa dele com troféus, medalhas e certificados expostos nas paredes. Uma prova do quanto ele leva a sério sua profissão.
Dedicação: o atleta e suas premiações
Percebe-se uma vontade do fisiculturista de se adaptar ao mundo, como, por exemplo, ao mostrá-lo pedalando em uma bicicleta ergométrica já tarde da noite. Em um silêncio onde o barulho do pedalar e da respiração do rapaz são os únicos sons audíveis, o diretor coloca em segundo plano jovens da mesma faixa etária do atleta conversando na rua abaixo da janela, uma distração que não faz parte da rotina do dedicado halterofilista.

E se no final do filme risos nervosos tomam conta da platéia quando a real proposta de Dornelles é apresentada, é justamente pelo fato do filme funcionar tão bem na sua idéia central. A de que a dedicação de um homem para o seu esporte precisa de um limite no qual sua mente não seja afetada de modo a permitir que sua aparência seja mais importante que seu intelecto.

E quando um cara só consegue prazer sexual com uma garota que faz flexões durante o momento de intimidade, é sinal de que algo não está tão são na mente daquele corpo insano.

Ela Morava na Frente ao Cinema

(Pernambuco, 2011, 30´) Direção: Leonardo Lacca. Com Renata Roberta, Renata de Fátima, Olimpio Costa, Jorge Queiroz, Bruna Rafaella Ferrer.


Curta do diretor pernambucano Leonardo Lacca, Ela Morava na Frente ao Cinema aborda a relação nostálgica que a personagem principal possui com o local onde morou anteriormente (a tal referência geográfica do título). No entanto, o que leva a crer que seria uma forma poética de se abordar o tema da mudança de espaços e a relação entre admiradores do cinema, torna-se uma trama confusa que aborda temas como homossexualidade reprimida, adaptação a novas experiências de vida, sejam elas sexuais ou apenas afetivas, e aceitação de si mesmo sem aprofundar nenhuma delas.

O filmes apresenta Renata, uma garota fora dos falsos padrões de beleza da sociedade, recebendo uma fita com misteriosas imagens que, supostamente, mostram o antigo lugar onde ela vivia, uma casa que ficava em frente a um antigo cinema de Recife. Hoje, no local, funciona uma assistência técnica de aparelhos eletrônicos. Sem conseguir assistir a fita, ela leva o vídeo cassete ao lugar para um reparo.


Renata busca lembranças perdidas em sua antiga casa 

A partir daí, o filme se torna confuso, sem um foco específico em determinada trama. Ele apenas passa a ilustrar a rotina da personagem, seja mostrando-a na citada assistência, visitando os cômodos do que um dia foi seu lar (mas sem uma profundidade emocional que capture o espectador na história), ou em seu trabalho como garçonete na cafeteria local. E o roteiro que, inicialmente, sugeriu um mistério por trás da tal fita, ignora totalmente esse fato até o final da projeção.

Apesar de apresentar falhas em sua trama, Ela Morava na Frente do Cinema traz tomadas interessantes, repletas de simbolismos que, somados ao sentimento de nostalgia que a protagonista sente, justificam seu tom onírico. Por se sentir ainda ligada ao seu antigo lar e viver inerte em um mundo onde todos, exceto ela, parecem evoluir (e seu emprego como garçonete em uma cafeteria representa bem essa inércia), suas visitas frequentes à assistência mostram sua vontade de viver, novamente, em um tempo onde sua vida parecia fazer mais sentido. E o modo como o curta capta a forma lúdica como a garota parece enxergar a vida é tocante. Em uma cena que faz uma referência à Rosa Púrpura do Cairo, a vemos, praticamente, adentrar na tela do cinema numa alusão à idealização que ela busca de sua vida.

Uma vida intensa que a belíssima cena do beijo proibido no banheiro da cafeteria representa de forma ideal em sua pressa, dor e vontade de tornar aquele momento contínuo.





domingo, 21 de agosto de 2011

Uma Primavera

(Brasil, 2011, 15´) Direção: Gabriela Amaral. Com Lucia Romano e Natalia Paes Parnes.


Para quem tem filhos, não há angústia maior do que aquela representada pela possibilidade de ser privado da presença deles. Passar pelo trauma de vê-los desaparecer sem que nada possa ser feito para evitar é uma das situações de maior terror que um pai ou uma mãe pode experimentar. O curta Uma Primavera, de Gabriela Almeida, livremente adaptado de uma história de William Blake, traz, justamente, essa sensação. E o modo como a diretora consegue transmitir para o espectador a tensão da perda de uma criança impressiona justamente pela simplicidade como os elementos da trama nos são apresentados.

Lara (Natalia Paes Parnes) é uma pré-adolescente que, no seu aniversário de 13 anos, é levada a um parque por sua mãe (Lucia Romano) para um piquenique. Como toda criança que começa a perceber que está crescendo, Lara é vaidosa. Na cena inicial, vemos a menina, inexperiente nessa área, cortar a perna no banheiro, enquanto se depila. Vemos em Lara todos os sinais de uma menina que está se tornando uma adolescente que passa a negar os hábitos de sua infância. Desde a preocupação em não querer usar bermuda ao invés de saia, mesmo sabendo do desconforto de se sentar no chão, até a negação de que o rosa é sua cor preferida, Lara personifica a adolescência de forma singular, com todos os seus anseios e incômodos.

A relação da menina com sua mãe reflete bastante o cuidado da mulher para com a criança. Há um apego de Lara com ela que, mesmo com toda a suposta independência que a pré-adolescência traz, a menina não consegue deixar de transparecer. Os traços de sua ainda infância, como chamar a mãe de “mamãe”, por exemplo, ou, ainda, na conversa ao telefone com o pai, chamá-lo de “papai”, enfim, os sinais estão todos ali. Há uma sutileza no modo como essa cena é mostrada. Até aquele momento, o espectador não sabe que o casamento dos pais de Lara acabou. Enquanto a menina conversa com o pai, vemos um claro desconforto por parte da mãe ao ouvi-la aceitar um convite para jantar na noite do aniversário. É quando se nota que a relação dos progenitores não é das melhores.

Sutileza é, na realidade, o instrumento principal no contar da história de Uma Primavera. Na citada cena do corte da depilação, vemos um band-aid amarelo ser aplicado por Lara ao ferimento. Em uma elipse ao mesmo tempo sutil e eficaz, a imagem já coloca a menina no carro, junto à sua mãe, enquanto esta manobra para sair da garagem em direção ao parque. Sendo uma ótima rima visual, a cor amarela do curativo vai representar, em outro momento, a relação de cuidado da mãe para com a menina, quando as duas encontram, durante o piquenique, um pássaro (também) amarelo morto no parque. E quando a menina desaparece após um cochilo da mãe, essa relação de cuidado ganha contornos psicológicos extremos, que a diretora utiliza de forma a manipular a sensação de desconforto do público. 

A palavra manipulação aqui não possui contornos pejorativos. Pelo contrário. Almeida utiliza o silêncio, a respiração, os sons da floresta, as árvores, tudo para causar na mãe e, por conseqüência, no público, uma sensação claustrofóbica de perda. Ao acordar e perceber o celular da criança próximo ao local e sem sinal dela, a mãe vai perdendo a calma. Vemos uma expressão racional no começo passar a ser substituída por sorrisos nervosos e, finalmente, gritos de desespero. Tudo acompanhado pelo canto de pássaros, barulhos dos ventos nas folhas e o som da casca do caule de uma das árvores sendo arrancada por ela em um gesto involuntário de inércia. Algo que, diga-se de passagem, amplia ainda mais a sensação de nervosismo e claustrofobia do personagem e, claro, do espectador.

A calma dando lugar ao desespero: a mãe de Lara começa a perder a esperança
A diretora insere elementos na trama que aumentam a sensação de desespero do público com toda aquela situação. Desde a pergunta feita pela mãe a um suspeito e sinistro vigia do parque até a busca pelo nome da menina na lista de locatários de bicicletas do local, todos os sinais levam a crer que algo pode ter acontecido à garota. O sentimento sufocante é palpável.

Em uma bela cena, por exemplo, vemos, a partir de uma imagem do alto, a mãe caminhar entre troncos imensos de árvores. A sensação de isolamento e claustrofobia torna aquela paisagem bucólica insuportável. É como se toda aquela grandiosidade do local esmagasse ainda mais a esperança de que a menina poderá ser encontrada. E a atuação de Lucia Romano merece destaque pelo modo como a atriz conseguiu transmitir o desespero da busca de modo tão impactante com a perda gradativa de sua calma.

Até o seu desfecho redentor, Uma Primavera cumpre o papel de nos levar a momentos de tensão que faz com que todos os elementos vistos em cena nos façam refletir de algum modo. No clímax do curta é que se percebe a intenção do nome do filme. Em poucos minutos, a sensação de perda da mãe atrelada ao local onde ela passou por aquele terror pôde ser alongada para algo que pareceu uma longa, triste e agonizante primavera.
       


Filme exibido na Mostra Competitiva do Panorama Internacional Coisa de Cinema, Salvador, 2011.