quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Iluminado - Versão estendida






Promovidas pelo BFI Southbank, complexo de cinemas localizado no centro Londres, as exibições de versões restauradas e/ou estendidas de clássicos como Lawrence da Arábia, de David Lean, e O Iluminado, de Stanley Kubrick, é uma das principais razões para o salivar desse cinéfilo que vos escreve.

A sessão de ontem de O Iluminado apresentou a versão americana que ainda era inédita em solo inglês. Com 144 minutos de duração, o filme traz o mesmo impactante inicio com a imagem aérea dos lagos do Maine (terra natal de Stephen King, autor do livro original, e local onde se passam quase todos seus romances) e a ida de Jack Torrance em direção às montanhas onde está localizado o amaldiçoado hotel Overlook. A música de Krzysztof Penderecki,The Dies Irae of the Auschwitz Cantata, tem, na tela grande, seu impacto elevado  criando um ambiente cuja claustrofobia se torna inversa devido à imponência e grandiosidade   dos cenários. Observar o diminuto automóvel passar por aquela estrada em um ambiente tão exuberante e já conhecendo o horror que se acometerá sobre aquele homem e sua família, é ainda mais angustiante por conta da inserção musical que ajuda a criar uma impressão pós-apocalíptica na cena.

Remontada pelo próprio Stanley Kubrick após o original ter sido criticado por King devido à falta de fidelidade com a narrativa do seu livro, essa inédita versão traz cenas que, de fato, tornam o desenvolvimento da psicopatia de Jack Torrance mais perceptível. Nela, ficamos sabendo do comportamento violento de Jack através das palavras de Wendy (Shelley Duvall), em uma pista que tem sua recompensa na cena em que Jack é servido por Lloyd, o garçom fantasma. Após ver pela primeira vez os elevadores do hotel jorrando sangue e os cadáveres esquartejados das gêmeas, Danny desmaia e é examinado por uma médica em seu quarto. A doutora quer saber detalhes sobre a relação do garoto com os pais, no que Wendy explica sobre a ocasião em que Jack deslocou o ombro do filho em um ataque de fúria, cena que vai remeter ao momento em que o pai explica ao bartender sua inocência.

Outro momento que difere do original é a apresentação do chef Dick Hallorann (Scatman Crothers), cuja entrada em cena torna-se mais fluída devido ao desenvolvimento da relação dele com a família Torrance. E se a relação de Jack com o hotel na versão original só é revelada no decorrer do filme, nessa versão estendida já vemos desde o inicio esse estreito déjà vu que o homem parece sentir, algo comprovado pelo momento de inserção no qual ele admite ter a sensação de já ter estado no Overlook anteriormente.

Com o desenvolvimento da trama e da gradativa entrega de Jack à loucura, percebe-se a razão para Kubrick não ter mantido todas essas cenas na versão final lançada em 1980. Claro, sem elas o filme soa mais direto, algo que a proposta de um longa de horror segue à risca: trazer o espectador para seu clímax de terror de forma mais rápida. Mas inegavelmente momentos como o que Wendy encontra esqueletos no salão de festas ou os rápidos flashes sanguinolentos e somados à expressão de terror de Danny nos segundos que precedem o golpe de Wendy com um taco de beisebol, aumentam exponencialmente a tensão de uma obra que parecia já ter alcançado seu grau máximo de tormenta.

E se a atuação de Nicholson já é famosa por seu impacto, a de Shelley Duvall impressiona sempre. Ter um já prévio conhecimento das técnicas usadas pelo perfeccionista Kubrick para tornar mais intensa a interpretação da atriz (técnicas que beiravam à crueldade e o sadismo), faz com que a observação do modo visceral com que ela desenvolve seu papel se torne louvável. Lidar com Kubrick não devia ser fácil. As lágrimas de Wendy no filme se misturam com as de Duvall. E uma personagem de personalidade fraca que parece não querer enxergar nada de errado em seu frágil mundo e que finge não perceber a falsidade de seu casamento acaba por crescer em meio ao pânico e ao terror.

Os momentos de horror proporcionados por O Iluminado na tela grande não serão esquecidos tão cedo. 

Mostra Somos todos Marginais - De Udigrúdi à Pornochanchada



Excelente oportunidade para quem quer se aprofundar no movimento da Pornochanchada e do cinema produzido na Boca do Lixo, em São Paulo, durante a década de 1970. A Dimas (Diretoria de Audiovisual da Fundação Cultural da Bahia) em parceria com o Governo da Bahia, além do apoio do Canal Brasil, traz a partir do dia 19 de novembro, na Sala Walter da Silveira (Barris, Salvador-BA), a Mostra Somos todos Marginais - De Udigrúdi à Pornochanchada. Nela poderão ser conferidos obras como Filme demência, de Carlão Reichenbach, falecido recentemente, O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, um dos marcos da filmografia policial brasileira; Mulher Objeto, de Silvio de Abreu, além do documentário Boca do Lixo, a Bollywood Brasileira e muito mais. Entrada franca.

Confira a programação abaixo.


De 19 a 25/11
Mostra "Somos Todos Marginais: da Pornochanchada ao Udigrúdi"

Sala Walter da Silveira
Entrada franca
Rua General Labatut 27 – subsolo da Biblioteca Pública dos Barris

Realização: Diretoria de Audiovisual da Fundação Cultural do Estado da Bahia
Produção: Pinball Produções
Apoio: Canal Brasil

Programação
Dia 19/11
Às 14h30
Boca do Lixo, a Bollywood Brasileira (BRA, 2011) – Episódios 1 e 2
Documentário
Direção: Daniel Camargo
Roteiro e Pesquisa: Fábio Vellozo
Direção de Fotografia: Fernanda Riscali
Supervisão Geral: Nelson Hoineff
Duração: 52 minutos
Produção
: Canal Brasil/Comalt
Classificação: 18 anos
Sinopse - Através de depoimentos daqueles que vivenciaram a chamada “época de ouro” – como as musas Helena Ramos e Nicole Puzzi; os diretores Sílvio de Abreu, Clery Cunha, Pio Zamuner e Claúdio Cunha; e o galã David Cardoso –, a série de documentários exibida pelo Canal Brasil traça um panorama do começo, auge e decadência deste verdadeiro polo cinematográfico.

Boca do Lixo, a Bollywood Brasileira (BRA, 2011) – Episódios 3 e 4
Documentário
Direção: Daniel Camargo
Roteiro e Pesquisa: Fábio Vellozo
Direção de Fotografia: Fernanda Riscali
Supervisão Geral: Nelson Hoineff
Duração: 52 minutos
Produção
: Canal Brasil/Comalt
Classificação: 18 anos
Sinopse - Através de depoimentos daqueles que vivenciaram a chamada “época de ouro” – como as musas Helena Ramos e Nicole Puzzi; os diretores Sílvio de Abreu, Clery Cunha, Pio Zamuner e Claúdio Cunha; e o galã David Cardoso –, a série de documentários exibida pelo Canal Brasil traça um panorama do começo, auge e decadência deste verdadeiro polo cinematográfico. Os temas dos episódios 3 e 4 são respectivamente “Luz, Cama, Ação” e “Céu de Estrelas”

16h30
Uma rua chamada Triumpho 969/70 (BRA, 1971)
Direção: Ozualdo Candeias
Documentário
Duração:
10 minutos
Classificação:
16 anos

Sinopse - Através de fotografias de autoria de Ozualdo Candeias registra-se a região da Boca do Lixo paulistana e as pessoas do meio cinematográfico que por ali circulavam.

A margem (BRA, 1967)
Direção: Ozualdo Candeias
Elenco: Mário Benvenutti, Valéria Vidal, Bentinho, Lucy Rangel, Telé, Karé, Paula Ramos e Brigitte Maier.
Duração: 96 min.
Classificação: 16 anos

Sinopse -  Inspirado em acontecimentos reais publicados em jornais populares, o filme aborda o dia a dia da população pobre que vive as margens do rio Tietê através das experiências de quatro personagens. Estes observam logo de início o surgimento no rio de uma mulher numa canoa; ela como que anuncia a morte dos quatro, que ocorrerá na segunda parte do filme.

Dia 20/11

14h30
Filme demência (BRA, 1985)
Direção:
Carlos Reichenbach
Elenco:
Ênio Gonçalves, Emílio di Biase, Imara Reis, Fernando Benini, Rosa Maria Pestana e Orlando Parolini.
Duração: 90 min.

Classificação: 16 anos

Sinopse - Após assistir impotentemente a falência de sua pequena indústria de cigarros, Fausto mergulha no interior de si mesmo. Rompe com Doris, a esposa infiel, rouba o revólver do zelador do prédio onde mora, e sai pela noite de São Paulo em busca de Mira-Celi, seu paraíso imaginário. Em seu trajeto suicida encontra personagens emblemáticos de sua existência obscura : o amigo de infância e desonesto Wagner, a amante suburbana Mércia, o visionário guru Honduras, um ex-colega da faculdade de economia que vende carros de segunda mão, o cunhado salafrário Dr. Gildo Lobo e seu sócio Dr. José Carlos Barata, amante de Doris, e entre outros, e sobretudo, Mefisto, que surge transvestido de várias formas, inclusive como uma simpática velhinha. É a eterna busca do conhecimento que o conduz à descoberta de seu próprio espelho. Uma viagem onde o importante não é chegar, mas viajar ; um movimento circular permanente que leva Fausto à concluir quem nem a alma tem para oferecer à Mefisto.

16h30
A super fêmea (BRA, 1973)
Direção: Aníbal Massaini
Elenco: Vera Fischer, Perry Salles, Walter Stuart e Georgia Gomide.
Duração: 101 min.
Classificação: 18 anos
Sinopse - Um laboratório de produtos farmacêuticos vai lançar no Brasil a pílula anticoncepcional para homens. Para a publicidade de lançamento, contrata os serviços de uma agência de propaganda, que começa a fazer uma pesquisa de opinião entre os consumidores em potencial. A pesquisa revela que 83% dos homens consultados temem tomar a pílula, com receio de que o produto possa diminuir sua virilidade. Na verdade, nada há a temer, demonstra o laboratório, uma vez que, administrada experimentalmente em animais machos, a pílula nada revelou de nocivo à potência. Mas, como induzir o público a aceitar o produto?

Dia 21/11

14h30
O olho mágico do amor (BRA, 1981)

Direção: Ícaro Martins e José Antonio Garcia
Elenco: Carla Camurati, Tânia Alves, Ênio Gonçalves, Sérgio Mamberti e Cida Moreira.
Duração: 84 min.
Classificação: 18 anos.
Sinopse - Uma jovem de 17 anos que trabalha como secretária em um escritório na Boca do Lixo, região central da cidade de São Paulo. Um dia, descobre atrás de um quadro na parede um pequeno buraco que dá para um quarto de hotel. Ali vive uma prostituta que recebe seus clientes. A jovem deslumbrada e envolvida em seu voyeurismo, muda todo o seu cotidiano para poder acompanhar os casos amorosos da prostituta. Produção elogiada pela crítica cinematográfica, foi premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte em nove categorias, incluindo Melhor Filme, História Original, Direção e Fotografia.
16h30
A Noite desejo
(Brasil, 1973)
Direção: Fauzi Mansur.
Duração: 98 min.
Elenco: Marlene França, Roberto Bolant e Betina Viany.
Classificação: 18 anos

Sinopse - Dois jovens operários saem em busca de uma noite de prazer pela cidade. Por serem menosprezados por onde passam, eles acabam se divertindo em um bordel barato.

Dia 22/11
14h30
O Mulherengo (BRA, 1976)
Direção: Fauzi Mansur
Duração: 100 minutos.
Elenco: Edwin Luisi,
Nádia Lippi, Ambrósio Fregolente e Lisa Vieira.
Classificação: 18 anos
Sinopse -  A "Banda dos Peregrinos" instala-se numa pequena cidade do interior. Alípio, um de seus integrantes vive para duas paixões: mulheres e música. Morto pelo pai de uma das vítimas de seus caprichos donjuanescos, Alípio se vê às voltas com um anjo que só lhe permitirá a entrada no Paraíso se reparar o mal que causou a todas as donzelas, durante sua vida material, arranjando um jeito para que todas se casem e sejam felizes. Alípio, sempre sob a fiscalização do anjo, procura uma a uma suas vítimas e as faz esposas de seus colegas de banda. O anjo, encarnado para poder cumprir sua missão de fiscal, passa a ter sentimentos de mulher, apaixonando-se pelo incorrigível mulherengo.
16h30
Damas do Prazer (BRA, 1979)
Direção: Antonio Meliande
Duração: 82 min.
Elenco:  Irene Stefânia, Bárbara Fazio, Paulo Hesse e Nicole Puzzi.
Classificação: 18 anos

Sinopse - Os desejos e contradições de um grupo de prostitutas, formado por novatas e veteranas, diante da dura realidade do mercado do sexo na Boca do Lixo, em São Paulo. Segundo filme de Antonio Meliande, um dos maiores fotógrafos do cinema brasileiro. Com roteiro de Ody Fraga, “o pornógrafo dos pornógrafos”, e inspirado em Nana, romance de Émile Zola, Damas do prazer conta com desempenhos magistrais das atrizes Irene Stefânia e Bárbara Fazio.

Dia 23/11
14h30
O Bandido da Luz Vermelha (BRA, 1968)
Direção: Rogério Sganzerla
Elenco: Paulo Villaça, Luiz Linhares, Helena Ignêz, Sobrinho Pagano, Roberto Luna, José Marinho, Ezequiel Neves e Sérgio Mamberti.
Duração: 92 min.
Classificação: 16 anos
Sinopse - Marginal paulista coloca a população em polvorosa e desafia a polícia ao cometer os crimes mais requintados. Conhece a provocante Janete Jane, famosa em toda a Boca do Lixo, por quem se apaixona. Ela o delata, provocando o seu suicídio.
16h30
Sexo às avessas (Brasil, 1982)
Direção: Fauzi Mansur
Duração: 92 min.
Elenco: Serafim Gonzales, Ana Maria Kreisler e Ênio Gonçalves .
Classificação: 18 anos
Sinopse - Casal inverte seus papéis na vida conjugal: ele se dedica às tarefas domésticas e ela se torna uma executiva conquistadora. A vida de ambos é abalada pelo flagrante de adultério entre a mulher e um amigo do marido que se tornou prostituto.
Dia 24/11
14h30
Mulher objeto (BRA, 1981)
Direção: Sílvio de Abreu
Duração: 125 min.
Elenco:
Helena Ramos, Nuno Leal Maia, Kate Lyra e Maria Lúcia Dahl.
Classificação: 18 anos
Sinopse -  Regina não passa de uma submissa e reprimida ex-secretária que só alcança o prazer através de fetiches que não abandonam sua imaginação. Ela sofre com essa situação incomum, que ameaça o confortável casamento com o rico empresário Hélio e, atormentada pela intensidade dos devaneios picantes, não consegue se relacionar sexualmente com o marido.
17h
Karina, Objeto de Prazer (BRA, 1982)
Direção: Jean Garret
Duração: 84 min.
Elenco:
Angelina Muniz, Rosina Malbousian,  Luigi Picchi e Cláudio Cunha.
Classificação: 18 anos
Sinopse - Filha de um pescador, Maria do Carmo é comprada por Rufino, que a prostitui sob o nome de Karina. Lucas, outro marginal, interessa-se por ela e passa a tentar conquistar seus favores, mas em vão. Numa partida de pôquer, Rufino aposta Karina com Lucas e perde, mas ela não quer entregar-se ao vencedor e Rufino a espanca violentamente. Karina mata-o. Na prisão, tem pesadelos, recordando os tempos em que viveu com Rufino. Conhece a advogada Sheila, que se propõe a defendê-la e consegue autorização para levá-la para sua casa à beira-mar. A amizade entre as duas vai se transformando em relação sexual.

Dia 25/11

14h30
Sábado Alucinante
(BRA, 1979)
Direção: Cláudio Cunha
Duração: 106 min.
Elenco: Djenane Machado, Rogério Fróes, Simone Carvalho, Neuza Borges, Sandra Bréa, Maurício do Valle e Fernando Reski.
Classificação: 14 anos
Sinopse - Da noite de sexta-feira até a madrugada de domingo, as portas de um novo mundo se abrem no interior de uma discoteca na Zona Sul do Rio de Janeiro. São emoções e conflitos vividos por uma série de personagens, que encontram na pista de dança o palco ideal para representarem a tragédia de suas vidas.

16h30
Como Salvar Meu Casamento (S.O.S sex shop, BRA, 1984)
Direção:
Alberto Salvá
Dureção: Wilma Aguiar, Carlos Capeletti, Malu Rocha, Matilde Mastrangi e Walter Breda.
Duração: 81 min.
Classificação:
18 anos

Sinopse - Um casal vive em profunda crise conjugal. O marido é levado por amigos a uma sexshop e ganha de presente uma língua de borracha. Com o objeto, consegue fazer a esposa chegar ao orgasmo e salva seu casamento.
20h30
Boca do Lixo, a Bollywood Brasileira (BRA, 2011) – Episódio 5
Documentário
Direção: Daniel Camargo
Roteiro e Pesquisa: Fábio Vellozo
Direção de Fotografia: Fernanda Riscali
Supervisão Geral: Nelson Hoineff
Duração: 26  minutos
Produção
: Canal Brasil/Comalt
Classificação: 18 anos
Sinopse – Episódio Fuk Fuk à brasileira

*Com informações da DIMAS. 


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Fim de ano movimentado na cena cinéfila de Salvador


Por João Paulo Barreto


Oitavo Panorama Internacional Coisa de Cinema; Oitavo Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual (Cine Futuro) e a também oitava edição do Festival de Cinema de Salvador. Três importantíssimos eventos da Sétima Arte que mantêm a cultura cinematográfica ativa em Salvador nesse final de ano. O primeiro, que aconteceu entre 25 de outubro e 1º de novembro, premiou curtas e longas metragens, contou com uma homenagem à Pornochanchada e apresentou oficinas ministradas pelos críticos João Carlos Sampaio e Adolfo Gomes. Saíram vencedores nas competitivas nacionais o longa O Som ao Redor, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, um pungente retrato da sociedade excludente que compõe a classe média de Recife, e o curta metragem Dizem que os Cães Veem Coisas, de Guto Parente, que, baseado em um conto homônimo do escritor Moreira Campos, também aborda um aspecto singular da sociedade, só que de Fortaleza. No âmbito local, o impactante curta dirigido por Rodrigo Luna, Arremate, baseado no conto We Can Get Them for You Wholesale, de Neil Gaiman, levou o prêmio na Competitiva Baiana. Os outros premiados podem ser conferidos no site www.coisadecinema.com.br


O Som ao Redor: filme com Irandhir Santos foi o vencedor do VIII Panorama
Dando continuidade à movimentada cena de cinema na capital baiana, começou no dia 02 de novembro e se estende até o dia 15 a oitava edição do Festival de Cinema de Salvador. O evento, que conta com sessões únicas e realizadas sempre às 20h30min na Sala de Arte Cinema da UFBA, traz obras de cineastas como o argentino Marcos Carnevale (Viúvas), o polonês Jan Jakub Kolski (Veneza), além do documentário nacional Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now! Confira no site http://circuitosaladearte.wordpress.com/ a programação completa e os trailers da s obras exibidas.

Começando no próximo dia 09, o Cine Futuro acontecerá no Espaço Itaú de Cinema/Glauber Rocha e no Espaço Cultural da Barroquinha, ambos localizados na Praça Castro Alves. Abrindo o leque de oportunidades com ingressos a preços populares e inscrições gratuitas para as palestras, o evento terá duas oficinas: Videoativismo e Cinema como Ferramenta, ministrada pelo diretor de fotografia Alan Schvarsberg e Dramaturgia do Som no Cinema, que terá o editor de som Waldir Xavier como ministrante. Outro destaque da mostra é o diálogo acerca do filme O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, que teve recentemente uma “continuação” estrelada com vigor pelo cantor e ator Ney Matogrosso, pela filha do cineasta Djin Sganzerla e dirigida por Helena Ignez e Ícaro Martins. O longa, inclusive, é roteirizado pelo próprio Rogério Sganzerla, que faleceu em 2004 quando ainda planejava iniciar as filmagens. Estarão presentes no festival o cantor e ator Ney Matogrosso, a cineasta Helena Ignez e a atriz Djin Sganzerla.

Cidadão Kane: Retrospectiva Orson Welles é um dos destaques do Cine Futuro
O Seminário trará uma competitiva de curtas na qual filmes como Desterro, de Cláudio Marques e Marília Hughes, Orwo Forma, de Karen Black e Lia Letícia e Dois, de Thiago Ricarte, são ótimos destaques. Outro ponto positivo do Cine Futuro 2012 é a Retrospectiva Orson Welles, que contará com a exibição de longas como Cidadão Kane, Soberba, Jornada de Pavor, A Marca da Maldade, dentre outros. Oportunidade única para quem quer conferir na telona obras tão importantes desse ícone do cinema mundial.

A programação completa do festival pode ser conferida na página www.cinefuturo.com.br

Salvador com excelentes opções para os amantes da sétima arte. Fica a dica!

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Panorama 2012: Menino do Cinco


(Brasil, 2012) Direção Marcelo Matos e Wallace Nogueira. Com Thomas Vinicius de Oliveira, Emanuel de Sena, Fábio Costa, Jonas Laborda.



Por João Paulo Barreto

Trabalho de extrema delicadeza e crítica mordaz à sociedade excludente, Menino do Cinco, de Marcelo Matos e Wallace Nogueira, é um filme acerca da solidão e necessidade de afeto. Claro que há outros temas envolvidos no curta metragem baiano ganhador do festival de Gramado de 2012. Porém, essas questões, juntamente com as ricas metáforas sociais e reflexões que esse tema traz, são os pontos de maior destaque da eficiente história escrita por Matos.

Ligados pela perda de um cachorro, dois garotos, um branco de classe média, Ricardo, e um negro da periferia (que não possui nome, em mais um sutil recado do roteiro), lutam para ficar com aquele animalzinho que consideram sua mais valiosa posse. Enquanto vive em uma rotina sem amigos, brincando sempre sozinho, com um olhar melancólico, Ricardo, o menino do cinco do título, encontra o filhotinho no playground do prédio onde vive com o pai.

Em um momento repleto de simbolismo, os garotos de rua ocupam seu tempo pedindo trocados para os motoristas que estacionam em frente ao prédio. Ao colocar o cãozinho por um momento próximo à grade do prédio, o animal foge e adentra no gramado do lugar. Observem como o prédio está em nível superior ao da rua. Nada representa melhor a diferença entre aqueles garotos. O que brinca no gramado do prédio, solitário, criando as próprias distrações para poder se divertir e o grupo de garotos de rua, que não têm o mesmo conforto e segurança de Ricardo, mas têm a amizade um do outro.

No cãozinho, ele encontra o sorriso perdido. Em um universo onde não há a presença feminina de uma mãe para mimá-lo, apenas seu pai sempre ocupado com o trabalho e, aparentemente irredutível quanto a não permitir animais no apartamento, Ricardo se diverte sozinho com bonecos e brincadeiras inventadas. O cachorro representa quase que seu único elo com uma infância divertida e calorosa que ele parece não conhecer. Nesse sentido, ver os meninos de rua brincarem entre si, mesmo sem o conforto que o garoto do condomínio possui, faz o espectador perceber o quão deprimente é a sua vida sem o animalzinho de estimação que pareceu surgir para lhe tirar daquela letargia.

Como percebemos no último momento do curta, abrir mão daquela única alegria será algo que ele não estará disposto a fazer de modo natural. Menino do Cinco é um filme que ecoa em sua reflexão muito tempo após você se desligar dele. 

E não é disso que é feito o bom cinema?

Entrevista: Marcelo Matos, roteirista e co-diretor de Menino do Cinco


Por João Paulo Barreto

Ter seu primeiro filme de ficção aclamado em Gramado com três prêmios de Melhor Curta Metragem, prêmio de Melhor Roteiro e um prêmio duplo de Melhor Ator não foi algo que Marcelo Matos assimilou muito bem. “Ainda bem que minha timidez me resguarda um pouco desse negócio de glamour”, diz, entre risos, o rapaz de voz calma. No entanto, não há como não perceber o êxito por trás de um roteiro tão bem resolvido como o de Menino do Cinco. Repleto de simbolismos que remetem às questões sociais que o curta ilustra de forma pertinente, o trabalho que dirigiu em parceira com Wallace Nogueira é o típico filme que não permite ao espectador deixá-lo para trás após o término da sessão. Em um crescente emocional, o filme dessa dupla talentosa te deixa preso a reflexões de um modo que poucos diretores veteranos conseguem. E tudo a partir de um argumento simples: a história de dois garotinhos, um de classe média, outro de rua, que brigam pela posse de um cãozinho. Ao observar os créditos finais, o espectador ainda vai ficar alguns segundos sentado olhando para a tela escura e refletindo acerca do que acabou de ver.



Nessa conversa, durante a oitava edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, no qual o seu curta estava indicado na Competitiva Nacional, Marcelo falou sobre o trabalho com atores mirins, a questão social inerente ao seu roteiro e sobre esse negócio de arrebentar em Gramado logo no primeiro trabalho com cinema de ficção.

Confira o papo!

Marcelo, a ideia da discussão social presente em Menino do Cinco já começou como algo central no roteiro?

Durante toda a minha trajetória, eu trabalhei em projetos sociais. Trabalhei em ONGs e criei outras voltadas para projetos sociais. A minha formação de vida está muito ligada a esse trabalho de frente, uma vez que eu sempre estive ligado a projetos sociais. Por isso, acabou sendo algo natural que, mesmo de forma inconsciente, isso aparecesse na primeira história que eu escrevesse. Porque essa é a minha vida.

Como foi o trabalho com o elenco mirim? O processo de seleção e a ideia de trabalhar com atores não profissionais.

Nós escolhemos nove crianças de classe média e nove crianças de periferia. Foram selecionadas nove que tivessem um perfil da classe média de Salvador e outras nove que seguissem a ideia do perfil de meninos de periferia. Passamos uma semana em oficina fazendo, pela manhã, os testes com os meninos que fariam um personagem e, de tarde, os testes com aqueles que fariam o outro. Foi a Maryvonne (Coutrot, uma atriz e  preparadora de elenco francesa), quem fez o trabalho com os meninos. Ela tem uma formação em teatro e trabalhou muito com Clown (técnica artística teatral conhecida por ampliar as características físicas mais marcantes do ator e utilizá-las no espetáculo. Chaplin e Rowan Atkinson são exemplos). E como nós não tínhamos muita experiência com cinema de ficção, uma vez que eu vinha do documentário e ela do teatro, a gente adaptou esses exercícios que ela usava de clown para fazer a preparação de elenco com esses dois grupos. Na época nós tínhamos medo de ficar uma coisa exagerada, afinal, clown em cinema só Chaplin, mesmo. Mas ao decorrer da oficina, a gente foi ajustando as coisas. O importante era trabalhar como a criança acessa o sentimento que ela vai dar na cena. Quem é de teatro tem um repertório de exercícios de construção do ator que é muito interessante e que no cinema não temos. No caso da escolha do Thomas (o ator Thomas Vinicius de Oliveira, protagonista do filme) que vive o menino de classe média, eu estava apostando somente nele. Foi um garoto que eu conheci no shopping e eu estava com receio de que a oficina viesse a estragar a atuação dele. Foi o Wallace (Nogueira, co-diretor) e a Maryvonne que me aconselharam que seria legal para a construção dele como ator participar da oficina. Acabou sendo muito importante para ele essa experiência.



E ele acabou dividindo o prêmio de Melhor Ator em Gramado com o Emanuel de Sena, que interpreta o garoto de rua.

Sim. O festival alterou sua premiação. Tiraram o prêmio de ator coadjuvante e ambos ganharam na categoria Melhor Ator.

Durante o processo de gravação, você teve a preocupação de trabalhar o psicológico dos garotos para poderem lidar com a possível fama que eles teriam com o filme? E após a aclamação, como foi esse trabalho?

Para eles, foi algo bem tranquilo, uma vez que os dois não tinham essa dimensão do que é o Festival de Gramado. Eu também fiz questão de não alardear muito. Eu apenas disse que eles ganharam o prêmio porque fizeram um bom trabalho. Nada mais do que isso. E eu falava isso para eles dizendo isso para mim, também (risos). Gramado, afinal, é complicado. Há uma ilusão, um fetiche ali que se o cara comer a pilha, ele se estrebucha. Como eu tenho uma experiência na área pedagógica por ter feito mestrado em educação, tive a ideia de entregar o prêmio para eles em um ambiente escolar, pois eu imaginei que as pessoas iam saber tratar essa questão. Afinal, eles são educadores, são professores. Inclusive, antes do filme entrar em Gramado, eu queria que ele estreasse lá no campus com um grupo de professores e alunos. Eu queria o filme mais voltado para esse público das escolas, crianças de periferia, professores. Eu realmente pensei muito em usá-lo no âmbito educacional. Então, entregar o prêmio ao Thomas e ao Emanuel foi interessante porque lá estavam meus professores e também os professores deles vendo o filme. Foi, para mim, a melhor sessão onde o filme foi exibido. De todas! Foi lá que eles aprenderam a importância do Festival de Gramado para o cinema brasileiro. Isso através das palavras de um professor deles e da minha professora. Eu tinha muita preocupação com esse impacto na vida dos dois.

E para você e Wallace? A ficha de Gramado caiu como?

(risos) Foi tranquilo. Eu acho que o fato de eu ser muito tímido é algo que me preserva, me resguarda desse glamour. Eu não acredito no glamour, sabe? Eu acho legal, claro, o reconhecimento do prêmio. E a gente contou com a sorte, também. Afinal, esse era meu primeiro filme de ficção e acabou ganhando em Gramado. Isso abre as portas, claro. Porque ele poderia ter passado despercebido. Seria bem capaz, aliás. Mas esse ano, em Gramado, a curadoria dos curtas foi muito interessante. E a galera queria era provar para Gramado o que é um bom cinema. E isso eles conseguiram fazer. E é um orgulho saber que o filme da gente serviu para isso. Muito mais do que qualquer vaidade de dizer: “Ah, olha, meu filme ganhou” ou algo do tipo. Claro, a gente pensou em festivais, mas, como já disse, pensamos esse filme para passar em escolas. Ainda mais que minha experiência em cinema é passando filmes em ambientes educacionais. Três anos de minha vida foram dentro de escolas passando filmes nacionais.

Marcelo e o co-diretor Wallace Nogueira no Festival de Gramado

Uma coisa que eu acho bacana em Menino do Cinco é a discussão social que o filme insere de modo subliminar. Um detalhe curioso é o fato do playground do prédio onde vive o Ricardo  ser em um nível acima da área externa, onde brincam os meninos de rua. Foi proposital?

Aquele é um prédio onde eu vivi vinte anos de minha vida. Eu não quis rodar aquela cena em nenhum outro lugar justamente por essa desigualdade. O playground fica acima do solo. De modo que isso é quase um conto de fadas, né? O rei e os plebeus. O cara que rapta a princesa e leva para o alto da torre. E isso, claro, expressado dentro de uma metáfora social. Eu não abri mão porque eu não achei em nenhum outro prédio aquele desnível. Engraçado você citar isso, uma vez que ninguém havia comentado antes.

Menino do Cinco concorre esse ano ao prêmio de Melhor Curta na oitava edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema. Após passar por festivais em outros Estados brasileiros, como você se sente concorrendo em sua cidade?

Esse ano, eu acho que o Panorama conseguiu se firmar como um dos festivais mais interessantes do Brasil. Primeiro pela curadoria do festival, que é superselecionada. O importante aqui não é o diretor ou o glamour, mas, sim, o filme. Nós estamos aqui para ver filmes. Isso é importante. E isso acaba faltando em outros lugares do Brasil. Eu costumo brincar com o Wallace dizendo que não são os grandes festivais que estão em crise, mas, sim, os pequenos que já estão nascendo mais maduros. Nós temos aqui em Salvador o Panorama, em BH, o Festival Internacional de Curtas, que já está na 14ª edição, em Recife, o Janela Internacional de Cinema, que já está na quinta edição. Esses são festivais que apostam em outro cinema e em outra maneira de se fazer festivais. Aqui, você tem um espaço de relação que é muito importante. Em outros lugares, a questão é centrada mais na competição. Eu até acho a competição bacana, afinal, é um incentivo para quem ganha. Mas não é o foco da coisa. O importante é a discussão de cinema que esse evento gera. Fico feliz por estar participando.

Você já tem projetos de novos trabalhos?

No momento, eu estou ocupado com um argumento de um longa metragem. Eu quero ver se eu consigo captar para o ano que vem e me dedicar a escrever esse roteiro. O tempo é escasso porque a produtora na qual eu e Wallace trabalhamos (a Vogal Imagem) vai rodar um curta agora no início de 2013, o Carranca, que é um roteiro cujo primeiro tratamento é do Wallace. Nesse trabalho, nós invertemos. O Menino do Cinco fui eu quem propôs e agora esse novo surgiu de uma ideia dele. Então, os planos são esses. O desenvolvimento do roteiro para um longa, um novo curta com Emanuel e Thomas e a produção de Carranca. Essa falta de tempo me preocupa um pouco uma vez que eu gosto de me dedicar 100% aos roteiros que escrevo no sentido de alcançar uma profundidade na criação. Planos a longo prazo, claro. 


Panorama 2012 - O Que se Move


(Brasil, 2012) Direção: Caetano Gotardo. Com Cida Moreira, Wandré Gouveia, Ane Rodrigues, Marina Corazza, Andrea Marquee, Rômulo Braga.



Por João Paulo Barreto

Ao assistir a O Que se Move, filme de Caetano Gotardo, um pensamento recorrente me vinha à mente. A ideia de que a dor de perder um filho pode ser considerada a mais excruciante de todas. Algo tão inimaginável que chega ao ponto de não possuir palavra que defina um pai ou mãe que tenha passado por isso. Enquanto a película progredia em dolorosos minutos e atuações brilhantes que permitiam ao espectador partilhar de todo aquele sentimento, uma lembrança de um texto da série A Sete Palmos me ocorreu. Acontece quando dois personagens conversam sobre o fato de que não há adjetivo que classifique pais que perderam algum filho. Filhos, quando perdem os pais, são órfãos; mas e quando a situação se inverte? Na série, o personagem diz achar que essa deve ser uma dor tão grande que não há palavra que a defina.

É justamente a análise dessa dor que Gotardo se propõe a fazer em seu longa de estreia. A imobilidade emocional, a tristeza que acompanhará aquelas pessoas para sempre, a vontade de tentar mudar algum detalhe ínfimo que impedisse que aquela tragédia acontecesse. Todos os “se” que bombardeiam a mente na tentativa de evitar que aquele acontecimento viesse à tona. Tudo em vão. A perda é impossível de se evitar. O que resta é tentar viver com aquele peso, é tentar conceber tamanha desgraça e se equilibrar com aquilo durante os longos anos que se seguirão.

A dor de uma perda sem sentido é trazida em forma de canção 
No filme, três histórias são contadas. A primeira envolve um adolescente no seu último dia de férias e as conversas que tem com uma amiga no parque e com os pais em casa. Uma relação palpável de carinho envolve aquela família. A mãe, que dá aulas no mesmo colégio onde estuda o filho, é de uma paciência tenra e atenção única para com o jovem. Gotardo desenha essa relação de um modo doce, mas sem pieguice. O jovem demonstra seu amor pela mãe de forma natural. A conversa dos dois não parece ser um papo entre mãe e filho, mas, sim, entre dois amigos. Curioso como o roteiro não cede à tentação de desenhar o rapaz como um jovem revoltado ou sempre disposto a brigar com os pais. É uma relação saudável. O garoto, porém, esconde algo que mudará a vida de todos.

Na segunda, a mais pesada emocionalmente, envolve um jovem casal pais de um bebê. Nesse episódio, o roteiro de Gotardo enquadra o sentimento de afeto dos pais. A conversa entre duas mães amigas sobre futuros planos de viagens e a esperanças que os seus filhos cresçam e se tornem amigos é vista pelo espectador com o quadro sempre voltado para a criança presente em cena. Ao final desse episódio, quando o marido de uma delas percebe a razão para seu mau estar emocional e tragédia que ele parecia prever (“Estou me sentindo mau e não sei a razão. Uma tristeza, uma dor no peito”), entendemos a razão desse longo quadro estático na criança. O choque de sabermos o que acontece com uma delas é muito maior quando lembramos do cativante rostinho daquele ser inocente que nada sofreu ou sofrerá em sua infância. O diretor nos poupa do choque da tragédia que a imagem vista pelo pai no banco de trás de um carro nos fazendo apenas imaginá-la. Sutileza impar, mas não menos impactante.

A mais impactante das histórias: a perda e a percepção do "se"
Por último, o reencontro de um filho perdido 16 anos antes e a dor que nunca cessou, mas que precisa ser revisitada. Em um reencontro dos pais que tiverem seu rebento roubado ainda bebê, o absurdo de ver aquele momento acontecer em um almoço de churrascaria. A mãe que contava os dias desde a última vez que o viu. A necessidade de chamá-lo por outro nome e não o que ela escolheu para batizá-lo. E, por fim, a percepção de que é tarde demais. De que está diante de um estranho.

Em tamanha e absurda dor, Caetano Gotardo opta não pelo diálogo expositivo, mas, sim, por uma forma musical de representar o sentimento de perda daqueles pais órfãos. Sim, como disse no começo desse texto, não há adjetivo capaz de classificar aquelas pessoas que terão que conviver diariamente com a tristeza. A solução é chamá-los de órfãos na esperança que uma dor semelhante sirva para definir a que eles sentem.

Em vão, creio. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Gonzaga - De pai pra filho


(Brasil, 2012) Direção: Breno Silveira. Com Chambinho do Acordeon, Land Vieira, Adélio Lima, Julio Andrade, Cyria Coentro, Cláudio Jaborandy, Giancarlo di Tomazzio, Nanda Costa, Silvia Buarque, Zezé Mota, João Miguel.


Por João Paulo Barreto

Ao transformar a história de Luiz Gonzaga em filme, o diretor Breno Silveira sabia o desafio que tinha pela frente. Afinal, o monumento da cultura nordestina apelidado de “Rei do Baião”, é uma das figuras mais icônicas da música popular brasileira e uma fonte quase inesgotável de histórias e “causos” que permearam seus quase oitenta anos de vida. Ao optar pelo enquadramento dramático na conturbada relação de Gonzaga e seu filho, o cantor e compositor Gonzaguinha, Silveira acerta, uma vez que esse viés permite que o filme fuja da simples estrutura documental, inserindo, assim, uma carga dramática das mais eficientes
.
Mesmo optando por esse enquadramento, o roteiro de Patrícia Andrade (que já havia trabalhado com o diretor nos seus três filmes anteriores) não foge da estrutura cronológica, que traz, apesar dos flashbacks, uma forma didática de apresentar a vida do autor de Asa Branca. Então, logo nas primeiras cenas, já encontramos o idoso Gonzaga (Adelio Lima), que recebe em Exu, sua cidade natal, o amargurado filho Gonzaguinha (impressionante atuação de Julio Andrade) que busca convencer o pai a entrar em turnê novamente para, assim, melhorar as finanças. É, também, uma forma que seu primogênito tem de se aproximar para que possa, finalmente, conhecer aquele a quem chama de pai.

Julio Andrade como Gonzaguinha: semelhança impressionante
Gonzaga – De pai pra Filho, pode ser considerado, desse modo, um drama familiar dos mais eficientes. O modo lento como a relação entre aqueles dois estranhos é apresentada nos ajuda a compreender as razões para as diferenças entre eles. Compreender e nos identificar. Desde suas raízes familiares, a relação estreita com o pai Januário (Cláudio Jaborandy), de quem herdou o ofício de sanfoneiro, ou com a rígida mãe Santana (Cyria Coentro), cuja relação com os filhos oscilava entre o amor incondicional e a necessidade de manter uma criação severa, o que vemos aqui é um homem inquieto. Alguém que está disposto a arriscar a própria vida pelo que acha certo. Sendo assim, não é com surpresa que o vemos desafiar o coronel por cuja filha se apaixona, ou assumir no futuro a paternidade de uma criança que, provavelmente, não gerou. O Luiz Gonzaga visto aqui é um homem cujos princípios se confundem com seus ímpetos.

A partir das fitas com entrevistas feitas entre pai e filho, o roteiro de Andrade cria uma sensível relação entre aqueles dois homens. Nesse ponto, Gonzaga ­– De pai pra filho consegue aprofundar de modo envolvente aquele embate de personalidades. Porém, é perceptível a fragilidade do texto no que tange ao desenvolvimento da trajetória de vida pessoal e profissional de Luiz Gonzaga. O filme não se propõe a contar toda a vida dele, claro, algo que não seria possível por conta do tempo de projeção. No entanto, alguns momentos como o artifício clichê da tosse com sangue para indicar a doença de alguém denunciam certa fragilidade do texto. Além disso, pontos marcantes da vida de Luiz, como o acidente de carro ou o seu flerte com os militares durante a ditadura passam quase despercebidos, como se o roteiro os inserisse apenas para constar.

Gonzaguinha entrevista o Rei: resgate da memória e do amor pelo pai
Inegavelmente, esse é um filme de atuações. O trio de atores que interpreta as diferentes fases do sanfoneiro impressiona pela transição quase imperceptível. O já citado Julio Andrade apresenta um trabalho impressionante de recriação de Gonzaguinha. Sua postura, seu tom de voz, tudo remete ao filho de Luiz Gonzaga. Cyria Coentro traz em seu olhar uma doçura e amor materno que entra em conflito com a dureza que o sertão lhe impõe. A cena em que ela e Land Vieira, o jovem Luiz, entram em conflito, é uma das mais belas do filme justamente por percebermos a dor de Santana em punir seu filho por não querer vê-lo morto.

As canções, sim, são o ponto alto do longa. Com a inserção de imagens e áudio originais durante a projeção, Silveira cria uma estrutura documental que dá vazão à grandeza daqueles artistas. Quando ouvimos e vemos Chambinho do Acordeon cantando na fachada da Cine Pax, no Rio, com todo o povo gritando o nome de Luiz Gonzaga, lá está o Rei do Baião. É como se lá víssemos, realmente, aquele sorriso largo do Rei. Aquela simpatia e carisma que espelha o nordeste. E as imagens reais do homem indo de encontro ao excelente trabalho de atuação de de Land Vieira, Chambinho do Acordeon e Adélio Lima dão a real dimensão da grandeza desse artista.

Gonzagão é o nordeste. Sem tirar nem por.   

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Entrevista: Breno Silveira



Diretor cujas obras tendem a um teor emocional, Breno Silveira disse ter se assustado quando percebeu que teria que registrar em filme a vida de um mito como Luiz Gonzaga. “A importância dele hoje é até difícil de mensurar”, explica o cineasta. O acesso às fitas de entrevistas gravadas por Gonzaguinha nos papos que este levou com o pai nos últimos anos de sua vida serviu como ponto de partida. A ideia era traçar um roteiro que focasse na relação conturbada entre esses dois ícones da música brasileira sem deixar de lada a trajetória do velho Lua. Com três atores vivendo as diferentes fases da vida de Gonzagão e uma reencarnação vivendo Gonzaguinha (Julio Andrade, ator que espanta pela semelhança com o filho do Rei do Baião), Breno diz que ficou muito feliz pela percepção do público nesse êxito da escolha do elenco. Após o sucesso da cinebiografia da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano em 2 Filhos de Francisco e do emocionante À Beira do Caminho, filme com João Miguel lançado em 2012, Breno Silveira deixa mais uma vez a marca de seu cinema emocional na história de outro ídolo da música e ajuda a tornar Luiz Gonzaga ainda mais eterno. É como diz a letra da canção-tema Mundo do Lua, interpretada por Gilberto Gil “Que vocês ainda possam me escutar/ Através de minhas velhas gravações/ É sinal que o mundo vai continuar / A Viver de mitos, sonhos e paixões”. Com obras como Gonzaga – De Pai pra Filho, esse sinal cantado por Gil se torna ainda mais perceptível.

Confira o papo!

Adentrar no universo mítico de um monumento como Gonzagão. Você tinha ideia do desafio que seria transformar a vida desse cara em filme?

Para mim, é um desafio muito duro falar de um cara que mitifica ainda mais com o passar do tempo. Isso é muito bonito. Se você vai a vários lugares do nordeste, Gonzaga ainda é a mola de tudo. Não tem São João sem que ele não seja o cara mais tocado. Todo ano ainda é assim. Ele cresceu com o tempo. A importância dele hoje em dia é difícil de medir. É um ícone nordestino de uma importância absurda e é de uma responsabilidade tremenda ter que retratar um cara que é um mito. Eu juro que cada vez que eu pisei em Pernambuco, que é a terra de meus avós, eu pensava: “cara, eu to fazendo a historia desse cara? Tô maluco!” (risos) Mas eu acho que no filme eu consegui ter a sorte de encontrar um eixo que foram essas fitas. E através dessa relação, eu consigo mostrar uma parte de Gonzagão. Não um todo, porque eu acho que ia precisar de uns dez filmes pra contar toda a vida dele. No mínimo. Nem em uma minissérie eu acho que conseguiria. Até mesmo porque esse filme vai se transformar em uma minissérie da Globo onde eu poderei colocar outras coisas. Mas é porque Gonzagão é muito grande. A gente não tem ideia do tamanho desse mito. Acho que a maior dificuldade nessa produção, nesses sete anos em que a história está comigo, foi chegar em um roteiro que tivesse começo, meio e fim e contasse as histórias que eu achasse importantes para que o público entendesse um pouco de Gonzagão. Mas que eu tinha certeza que não ia contar tudo, afinal, ele é muito grande.
  
No filme, assim como em 2 Filhos de Francisco, você opta por inserir o próprio personagem real na trama. No caso de Gonzagão, imagens e áudios de arquivo permeiam a projeção. Você acredita que essa mistura de documentário com ficção ajuda na construção da narrativa?

Essa dúvida me surgiu durante a montagem. Quando eu escrevi o roteiro, eu nunca pensei em fazer isso. Mas, de alguma forma, eu comecei a sentir falta da figura do Gonzagão no filme. Esse cara era mais emblemático, eu acho, do que o que eu tinha conseguido filmar. Isso acrescenta de alguma forma para o público que não conhece a figura de Luiz Gonzaga. Porque quem sabe da importância dele, de alguma forma, no filme, vai entender sem precisar da interferência da imagem de arquivo. Mas quando eu mostrava para um público mais jovem, algumas dessas pessoas não tinham ideia da imagem dele. E aquilo causava uma potência, sabe? Porque o cara se assustava! “Pô, mas esse era o cabra?” Isso acontecia quando eu mostrava para aquele público mais novo, ou figuras lá do Rio de Janeiro que não o conheciam direito. Porque Gonzagão é aquele cara muito forte no nordeste, mas de alguma forma, no sul, ele é menos lembrado. Então, para esse público, a diferença era de ter uma imagem de arquivo ou não era tão grande que eu cheguei à conclusão que tinha que inserir.

Você acha que isso pode facilitar, também, em uma possível carreira do longa no exterior?

Quando eu penso no filme, eu concluo que ele tem de ser bom, também, para o estrangeiro. Não porque eu penso que ele obrigatoriamente tenha que fazer carreira internacional, mas, sim, porque a gente não tem que pressupor que as pessoas conheçam Luiz Gonzaga. Eu sempre penso nisso. 2 Filhos de Francisco foi bem pra caramba lá fora. Vendeu pra Ásia inteira. Eu abri sete salas em Tóquio. E é uma história muito brasileira, mas de alguma forma, ela está contada de um jeito que você não pressupõe que sejam dois caras famosos. Então, essa opção de inserir a imagem real consegue emoldurar para um pessoa que não conhece o Luiz Gonzaga. E essa inserção do material de arquivo causa um furor, sabe? É muito louco.

Sem contar que as versões originais das canções de Gonzagão são difíceis de serem recriadas por causa da técnica única que o velho Lua possuia.

Pois é. Por exemplo, ninguém tocava o “Vira e Mexe” do jeito que eu queria. Nenhum sanfoneiro. Nenhum! Quando eu via as imagens, eu dizia: ”Mas olha o safado como toca!”. Aí alguém sempre me dizia que aquele era um swingue que só um sanfoneiro como Gonzagão tinha. Era uma particularidade dele. Então, eu pensei, “vou ter que ter ele mesmo tocando essa música porque eu não estou aguentando esse ‘Vira e Mexe’ de estúdio que vocês fizeram” (risos). Essa acabou sendo a primeira imagem de arquivo que eu inseri. Eu lembro de ter falado: “Vocês estão com um estúdio moderno, com três ou quatro sanfoneiros!  Esse cara esta somente  com uma zabumba e um triangulo e o som que está vindo da imagem real é dez vezes mais bonito do que o que vocês gravaram para acompanhar o Chambinho (do Acordeon, ator que vive Gonzaga na fase adulta)”. Essa foi a primeira vez que eu senti falta do original. Então eu pus e ficou só aquele. Aí quando veio Asa Branca”, eu falei: “Ah, rapaz, Asa Branca é maior do que isso!”. Só o real iria dar a imagem de quem foi esse cara. Não adiantava ser uma superprodução, pois só o real iria conseguir transmitir a dimensão dele.

E aqueles vídeos famosos dele, como a história de seu retorno a Exu e o reencontro com Januário? No filme, eu percebi que a história não estava na integra. Foi doloroso ter que cortar alguns trechos?

O áudio original me dava vontade de colocar a cena na integra. A fala do “cheiro do velho, do cheiro da família” ou o barulho do “timbungado” do caneco, eu tinha vontade de colocar aquilo tudo. E ficava desesperado na montagem quando percebia que tinha que cortar (risos). Eu escutava o pessoal na sala de montagem me dizendo que esse filme completo que eu queria fazer não seria possível. Então, o jeito era cortar. O problema era que quando cortava na voz de Gonzaga, cortava também na imagem, sendo que a cena original que eu gravei tinha toda a reconstrução daquele momento. Pra você ter uma ideia, toda a cena até o momento chave, que era o abraço dele no pai, tinha quase dez minutos. Então, a ideia era cortar todos aqueles minutos para sermos objetivos, uma vez que a cena teria seu auge no abraço e na festa pelo retorno do Luiz.



A escolha dos atores que viveram o Gonzagão foi algo bem eficiente, uma vez que são três gerações e a transição de um para o outro ocorre de modo bem natural. Quando vemos o adolescente Lula na interpretação de Land Vieira passar para o Chambinho do Acordeon e, em seguida, para o Adélio Lima, sentimos uma naturalidade na transição. Como foi a seleção desse elenco?

Uma das coisas que mais me deixa feliz é esse tipo de comentário. O Merten (Luiz Carlos Merten, crítico de cinema do jornal Estadão), escreveu exatamente isso. Ele falou que são três figuras que você não percebe a diferença entre elas. E são três atores totalmente diferentes!

Eu pensei que o Adélio Lima e o Chambinho eram a mesma pessoa!

(risos) Olha que lindo isso! Realmente, fico feliz. É aquela forma de atuar que a gente trabalha no set. Os trejeitos dos atores, as passagens. Eu tenho um cuidado muito grande com isso porque meu sonho era fazer com o mesmo ator. Mas eu já me deparei logo no começo com esse problema de selecionar o protagonista. Eu fiz uma porrada de testes de elenco com vários atores famosos, alguns globais até, e nenhum deles se parecia com o Gonzaga. Depois eu comecei a fazer testes para saber se algum deles tocava um instrumento. Um ou outro até tocava, mas sanfona era algo complexo. Depois eu quis que eles cantassem, e nenhum deles tinha aquele vozeirão do Gonzaga. Bom, aí nesse ponto eu já estava achando que havia entrado em um beco sem saída.  E isso já com a data pra começar a filmar marcada e eu ainda não tinha meu protagonista. Mas não podia ser. Em algum canto desse país deve ter um Gonzaga, eu pensava. Aí começamos a anunciar nas rádios. Em Caruaru, nas rádios do nordeste. A partir desse ponto, apareceram cinco mil inscritos. Com essa quantidade de inscritos, eu comecei a perceber que com Luiz Gonzaga, nada era pequeno. Não tinha brincadeira pequena com ele. Aí tivemos que criar uma forma de triagem e separamos por foto todos aqueles que eram parecidos com ele. Aí a lista caiu para 100 pessoas mais ou menos parecidas. Depois separamos todos aqueles que eram músicos daqueles que tinham atuação. O número já caiu para quarenta. A partir daí seguimos para as entrevistas individuais. Dez foram escolhidos e trazidos para o Rio de Janeiro onde cinco deles foram selecionados para ficar em laboratório de atuação em uma casa de Copacabana junto comigo e com o preparador de elenco. Com esses cinco, eu comecei a perceber que não tinha todas as idades e só o Chambinho que tinha aquele sorriso largo que esbanjava a simpatia do Gonzaga. Nesse momento, eu o escolhi e mandei o Adélio embora. Expliquei a ele que não dava porque ele não tinha aquele sorriso largo do Chambinho, que era como do do Gonzagão. Foi quando ele me perguntou sobre a versão mais velha do Luiz e eu disse que preferia trabalhar com maquiagem. Mas o Chambinho não tinha a estrutura física da versão idosa do Luiz. Aí a condição que eu coloquei pro Adélio ganhar o papel foi ele engordar, no mínimo, dez quilos. E o cara engordou! Voltou ao Rio de Janeiro dez quilos mais gordo.

Gordo feito um major, como diria o velho Lula.

Exato. Gordo feito um major (risos). Ele falava assim. Esse texto, inclusive, está no filme. Mas não entrou para esse corte. É quando ele entrega a sanfona para penhorar e volta na mesma birosca anos depois. Nessa volta, ele pergunta ao dono que está ouvindo rádio se costuma tocar muito Luiz Gonzaga ali.  O cara, sem reconhecer o homem, responde dizendo que toca demais. Luiz pergunta a ele se é verdade que o cantor é dali daquelas bandas. O dono da birosca se empolga dizendo que sim, ele é o filho de Januário, mas agora ele enricou. Tá gordo feito um major (risos).

O roteiro é baseado no livro da Regina Echeverria e nas fitas que Gonzaguinha gravou com entrevistas com pai. Como se deu o processo de filtragem para chegar ao material final?

Antes dessas fitas que me levaram a fazer o filme chegarem às minhas mãos, elas passaram pela Regina, que acabou fazendo uma bela biografia. A partir disso, a gente comprou os direitos do livro para fazer o longa. Com o tempo, eu acabei percebendo que as gravações me comoviam mais do que o próprio livro. Então, eu usei muito a obra, mas nas fitas tinham informações mais importantes e, fora isso, a quantidade de histórias que iam chegando das pessoas que viveram com ele era tão absurda que somente a biografia não deu conta. Então, o filme acabou tendo uma parte inspirada nela, mas o resultado final foi além. Afinal de contas, Luiz Gonzaga possui muito mais histórias do que um livro.

A música do Gilberto Gil (Mundo do Lua) entrou no projeto de que forma?

Eu procurei o Gil porque uma parte das músicas do Luiz Gonzaga foram regravadas por ele na ocasião de Eu Tu Eles, filme do Andrucha Waddington que eu fotografei. No disco do filme, ele regravou mais de dez músicas do Luiz. E aquela coisa me impressionou muito porque o Gil falava demais no Luiz Gonzaga. Quando esse projeto começou, uma das primeiras pessoas que eu fui entrevista foi o ele. Na ocasião, Gil demonstrou interesse em me ajudar e criar uma parceria no projeto. Foi quando eu pedi a ele uma canção e que me ajudasse na seleção das músicas. Ele respondeu que “pra Gonzagão, qualquer coisa na terra”. Pouco antes de eu  terminar o corte do filme, eu mandei para ele algumas imagens. Acabou que ele me procurou depois dizendo que tinha se emocionado e que havia composto uma canção sobre o Luiz Gonzaga, Mundo do Lua, cuja letra abre o filme. Uma canção linda demais.



Entrevista: Cyria Coentro - Gonzaga De pai pra filho



Por João Paulo Barreto

Em seu segundo filme sob a direção de Breno Silveira (o primeiro foi Era uma Vez...,de 2008), Cyria Coentro teve a responsabilidade de viver a mãe de Luiz Gonzaga, uma personagem que oscila entre a doçura da maternidade e a postura firme de uma matriarca familiar no sertão nordestino. Santana, mulher do lendário sanfoneiro Januário, criou Luiz Gonzaga até os 17 anos, quando ele precisou fugir da fúria de um coronel de Exu, no interior de Pernambuco. Ela carregou durante muitos anos a dor por achar que a sua surra foi a responsável pela partida do filho. “Aquela foi uma surra dada para salvar a vida do próprio filho. O fato dela chorar no momento em que dá a surra demonstra isso”, explica Cyria. Santana foi um papel que exigiu um apuro na atuação da atriz baiana, uma vez que não havia muitas cenas na qual ela pudesse desenvolver essa relação entre mãe e filho. Com experiência na televisão e no teatro, Cyria está em cartaz com a peça Los Catedrásticos e fala nessa entrevista sobre como é transitar tão bem entre a comédia e o drama; (falta de) opções para o mercado cultural em Salvador e, claro, sobre Santana e seu filho, Luiz Gonzaga.

Confira o papo!

Olá Cyria. Antes de a gente começar a entrevista, primeiramente eu queria agradecê-la pelas gargalhadas proporcionadas em Los Catedrásticos.

Ah, sim. (risos) Você viu quando?

Há dois meses, no teatro do ISBA.

Recente, então. Bom, fico feliz por você ter gostado.

Bom, aproveitando esse contexto, eu queria te perguntar sobre essa transição da comédia para o drama e vice versa. Em Gonzaga, você interpreta uma mãe do sertão, personagem que sofre pela saudade do filho e tem uma das cenas mais dramáticas do longa. É difícil conciliar o drama com a comédias?

Olha, eu sou uma atriz essencialmente dramática e uma comediante circunstancial. Eu não me considero uma comediante. Por exemplo, Maria Menezes, que é uma grande amiga e minha colega de atuação em Los Catedrásticos. Ela tem perfil de uma comediante. Eu não tenho, Mas eu transito bem na comédia quando eu tenho um respaldo. Mas o meu gênero natural é o drama. Eu tenho mais facilidade com ele.



Alguns críticos de cinema costumam afirmar que os melhores atores são oriundos da comédia. Você concorda com isso?

Eu acho que um ator que faz bem o drama, ele tem grandes chances de fazer bem a comédia. O drama e a comédia são gêneros opostos e muito difíceis. Cada um com a sua dificuldade específica. Mas o drama requer um aprofundamento no sentimento. Pois o ator precisa dessa capacidade de transformar aquele sentimento, vamos dizer, mentiroso, em uma coisa crível, afinal, ele pode não estar sentindo aquilo de verdade. Isso é necessário para que o público não fique apenas assistindo-o fazer o drama, para que o público se emocione junto com ele. Isso para mim é mais delicado do que você descobrir o timing da comédia. Para mim, o segredo do drama é esse: é você transformar esse sentimento em algo crível e, de fato, emocionar o público. O segredo da comédia é você descobrir o timing da piada. São os cliques com os quais você se liga e leva o público junto com você. Claro que o timing da comédia não é algo que seja simples, porque uma pessoa que não tem nenhum traquejo com esse gênero não vai conseguir chegar a esse timing e não vai contar a piada. Mas é uma coisa menos profunda, algo que requer menos sensibilidade, digamos assim (pensativa). Não, não é sensibilidade a palavra. Requer menos aprofundamento, eu vou colocar essa palavra. Por que o sentimento tem que ter um aprofundamento, e a comédia pode estar em um plano mais superficial no qual você pode atingir a plateia. Mas o sentimento se você não aprofunda...

É como se o alcance do timing da comédia fosse mais rápido que o do drama?

(pausa) É, na comédia, se você está no timing certo, o alcance é mais rápido. Se você está com o timing certo, toda a plateia vai te acompanhar e rir. Tem que ser alguém muito mal humorado para não achar aquilo engraçado. E o drama, você transformar aquele sentimento em algo capaz de captar todo mundo, é mais difícil. O alcance do drama pode não chegar a todos da plateia, afinal lá pode ter pessoas que são mais difíceis de se emocionar. Na comédia, se você está no tempo certo, a plateia inteira vai rir. Para fazer a plateia inteira chorar é mais complicado (risos).

As histórias que Luiz Gonzaga contava em relação aos pais são muito tocantes e sensíveis, algo que denota uma relação muito intima que ele tinha com Januário e Santana. Há aquela história da surra que ele levou da mãe quando resolveu desafiar o coronel, pai de sua amada. Nessa, ele fala que apanhou até o cabo da faca se desmanchar. Sua personagem, Santana, é uma mãe do sertão. Uma pessoa que consegue equilibrar bem a doçura da maternidade e o amor pelos filhos com a aspereza e dureza daquele ambiente do sertão. Como foi trazer esse equilíbrio para sua atuação? Afinal, você também é mãe e conhece esse sentimento.

Para mim, essa foi a grande chave e o ponto mais delicado da construção dessa personagem. Ela é, de fato, uma mulher do sertão. As pessoas do sertão são mais secas, ásperas, pela própria condição geográfica. É muito sol na cabeça, é muito calor, as pessoas se pegam menos. Além disso, a rotina de trabalho é muito pesada. A vida é muito dura. Essas condições acabam por tornar o afeto muito singular e diferente do meu, por exemplo. Eu sou uma mãe muito rigorosa. Para tudo tem horário, mas, ao mesmo tempo, eu sou muito amorosa, derretida. Coisa que a Santana não é. E, ao mesmo tempo, eu não via a Santana como uma mãe dura e rígida apenas. Ela tinha uma doçura que eu não sabia exatamente onde colocar. Acabou que eu tentei colocar no olhar. Afinal, ela não tem muita atitude amorosa. E também não demonstra muito calor amoroso em suas falas. Ela é muito seca no texto. E como em todas as histórias, são momentos estanques que são retratados. O filme não conta uma vida, conta momentos. Então, eu não tinha muitas oportunidades dentro do roteiro para construir essa mãe no decorrer do tempo. Eu não tinha tantas cenas para mostrar esses lados dela. Onde ela é amorosa, onde está o carinho, onde esta a dedicação de mãe ou, no outro extremo, onde está a rispidez, a dureza. Então, eu tentei mostrar essa doçura no olhar. A maneira como ela olha para o filho, a maneira como ela o repreende foi como eu resolvi usar isso.



Durante a surra, percebemos que ela está chorando, inclusive.

Sim. E o fato dela chorar nesse momento demonstra que aquela é uma atitude que ela se viu obrigada a ter por ter visto a iminência do seu filho morrer. Aquela é uma surra que ela dá para salvar a vida do filho. Ela está se matando para salvá-lo. Após aquilo, ela não se recuperou. Passou meses sem comer ou dormir direito. Depois que ele foi embora, ela se culpou e sofreu muito com aquela atitude que cometeu. Afinal, ele passou 16 anos fora. O mais curioso é que nada naquela cena estava previsto. Ela não foi ensaiada, não tinha texto no roteiro. E foi uma cena que me pegou de surpresa, pois ela estava escalada para o terceiro dia de filmagem e acabou sendo a primeira que nós rodamos do filme com a minha personagem. Eu cheguei no set e o plano de filmagem era com outras cenas externas, mas por conta do tempo que ficou nublado, acabaram sendo adiadas. Aí nós entramos e fizemos as internas, sendo a primeira justamente essa da surra. Eu me lembro de ter entrado em um rápido desespero, chamei Breno (Silveira, diretor do longa), “Breno, como assim? Eu não estou preparada para filmar essa cena agora. A primeira?” (risos) O texto saiu na hora de fazer a cena. Tudo que eu falo eu não pensei muito antes. Foi algo um pouco no susto e acabou saindo.

Seu segundo trabalho com o Breno Silveira. Começou com o Era uma vez... (2008) e agora se complementa com Gonzaga. Está virando uma parceria?

Ô, parceria abençoadissima, (risos). A gente se conheceu durante os testes que fiz para o Era uma vez... Tive sorte de ser selecionada entre tantas outras atrizes e acabou sendo um encontro muito feliz porque eu sou uma atriz que ama ser dirigida. Eu não sou uma atriz autossuficiente. Eu chego no set com uma proposta, com o texto estudado, mas eu sou como um papel em branco. Venho com o texto estudado e minha compreensão da personagem, mas, ao mesmo tempo, eu venho muito disponível para o diretor. Amo colocar na minha interpretação pedidos do diretor. E o Breno tem uma direção muito carinhosa, muito subliminar. Ele não te fala o que é que ele quer que você faça. É meio como o Zé Celso (Martinez Corrêa, um dos principais nomes da direção teatral brasileira). Eu trabalhei com o Zé no teatro e, claro, são coisas totalmente diferentes, eu não estou comparando os dois, mas eu me senti da mesma forma sendo dirigida no teatro pelo Zé Celso e no cinema pelo Breno. Eles não falam o que eles querem, de que forma eles querem que você fale, qual é o gesto, qual a marcação da cena. É uma direção de imagens, repleta de subtextos e que preenche o ator. Foi uma parceria muito feliz a minha e a do Breno. Eu gostei da maneira como fui dirigida e ele se sentiu confortável ao perceber em mim uma atriz que responde ao estímulo do diretor.

Breno é conhecido por ter em seus trabalhos uma carga bastante emocional. Você acha que isso é um reflexo dessa direção mais calma?

É um reflexo dos tipos de direção dele e dos temas que ele aborda. O tema que permeia todos os filmes do Breno é justamente o poder do amor. Ele fala do amor que nasce nas relações e no poder de transformação desse sentimento. São vários tipos de amor. É o amor de 2 Filhos de Francisco, de um pai pelos filhos. Esse sentimento não é só o bonzinho ou o cor de rosa. Ele também tem seu lado cruel, como a surra da Santana; a infância sofrida dos dois meninos junto ao pai, Francisco; o amor sofrido que nasceu entre o caminhoneiro João e o garoto que pede carona em À Beira do Caminho. Em Gonzaga são vários esses amores. É o amor entre ele e sua paixão de adolescente, entre ele e a Odaléia e, por fim, o amor que é resgatado entre o pai e o filho no final da vida. Enfim, para mim, esse resultado dos filmes do Breno, algo que faz com que eu me debulhe em lágrimas, não que eu seja uma pessoa muito difícil de chorar, mas, pelo amor de Deus (risos), nos filmes do Breno a gente morre, praticamente, de chorar. Essa comoção que os filmes dele causam se deve tanto aos temas quanto a essa forma dele de dirigir, que é muito emotiva. Ele é um diretor que abraça o ator, sabe? As cenas dramáticas que eu fiz em Gonzaga fazem com que ator entre naquele estado. Claro, muitos profissionais podem dizer “ah, eu sou um ator, não senti nada”, mas para você fazer uma cena como a da surra que Santana dá em Luiz, ou a última cena de Era uma vez...,, por exemplo, o ator tem uma entrega naquela emoção que quando o diretor diz “corta!”, aquilo não acabou ainda. O Breno acolhe esse ator até você conseguir se livrar daquela emoção. É o conforto de uma parceria. Eu estou fazendo o filme para ele, então é como se o Breno estivesse agradecendo. Há uma maneira dele se relacionar com os atores que é muito afetiva. E isso se reflete nas atuações e no resultado final do filme.

Você fez parte do elenco de 3 Histórias da Bahia, o filme que reinaugurou a produção do cinema baiano. Hoje, apesar de ainda não ser o ideal, já há uma diferença perceptível na cena cinematográfica daqui. Diretores como Sérgio Machado, Cláudio Marques, Marília Hughes, Pola Ribeiro, Edgar Navarro, Henrique Dantas, João Rodrigo Matos, são nomes que levam para frente a sétima arte aqui em Salvador. Qual a sua opinião em relação ao cinema feito na Bahia atualmente?

Eu ainda acho muito tímido o mercado cinematográfico baiano. Se a gente pensar em Recife, por exemplo, chega a ser um disparate comparar com a produção de lá. A quantidade de investimentos em Pernambuco é muito maior. E é lamentável essa falta de investimento aqui na Bahia. Eu morei no Rio durante onze anos, voltei ano passado para cá e estou muito triste com o Estado da Bahia como um todo. Salvador toda esburacada, tudo abandonado, os teatros não tem subsídios. Eu fiquei em cartaz agora um ano inteiro com um espetáculo de sucesso (Los Catedrásticos) e os jornais, quando vão divulgar a peça, pedem por fatos novos. Meu Deus, o fato novo é justamente esse! Um ano de sucesso com a peça, um grupo que tem 23 anos de estrada. Aqui há uma mentalidade ainda muito do contra. Eu não entendo isso. É como se nem a mídia, nem os governantes, nem a secretaria de cultura estivesse lutando a favor. Cadê esse prefeito? Cadê esse governador? Aonde estão essas pessoas? Fizeram o que pela Bahia? Há um sintoma em Salvador, sabe? Eu não entendo por que a orla daqui nunca teve uma reforma. Não entendo por que não há hotéis, bares, restaurantes por lá. A Barra ser daquele jeito há décadas, aquele Porto da Barra sujo daquele jeito. É uma cidade que é linda, que eu amo, que se eu pudesse escolher, eu moraria aqui, afinal é o lugar eu nasci, onde minha família e grandes amigos vivem. Foi onde eu estudei e criei meus vínculos, mas eu sofro morando aqui, sofro por ser um lugar que não te oferece opções de lazer, que não tem investimentos na área de cultura. O polo de cinema tá dando sinais de vida, mas ainda não tem a força que eu acho que poderia ter. O que não falta aqui é artista talentoso e não é à toa que praticamente todos estão fora. Poucos estão aqui. Afinal, o ator aqui fica sem opção. Então, você tem que sair, tem que ir atrás. Salvador merece um investimento maior.