quinta-feira, 29 de março de 2012

Shame

Na minha coluna semanal do Coisa de Cinema, você confere as impressões sobre o novo filme de 
Michael Fassbender.





Heleno

(Brasil, 2011) Direção: José Henrique Fonseca. Com Rodrigo Santoro, Aline Moraes, Angie Cepeda, Othon Bastos, Herson Capri. 



Em tempos de jogadores que simulam contusões para não entrar em campo (vide o caso do atleta do Fluminense, Fred, que, recentemente, admitiu ter fingido uma lesão em um jogo –pasmem – da seleção), conhecer uma figura como Heleno de Freitas, atacante do Botafogo durante o final dos anos 1930 e na década seguinte, acaba por gerar inevitáveis comparações entre a época atual e a de outrora.

Temperamental e violento dentro e fora de campo, Heleno era o tipo de craque que valia por todo o time, como demonstram as manchetes de jornais que contextualizam a imagem do jogador logo no começo do filme. É quando conhecemos a sua figura já em um estado de saúde debilitado, internado em um asilo para deficientes mentais. A incrível expressão magra e sofrida de Rodrigo Santoro já nos dá uma pista de que aquela atuação impressionará pela entrega que o ator fez ao personagem.

Corta para os tempos áureos do jogador. No auge da forma física, mas, contraditoriamente, sempre fumando, uma característica marcante tanto para ele quanto para sua futura esposa (e uma de suas muitas mulheres), Ilma, vivida por Aline Moraes, Heleno é um bon vivant não muito diferente dos já citados jogadores da atualidade, mas que se destaca por sua dedicação ao futebol não como um emprego, mas como uma paixão. A contradição da vida de Heleno é constante. Sempre bebendo e apenas enquadrado sem um cigarro entre os dedos quando em campo, o jovem segue uma vida desregrada, repleta de vício (cheirar éter é um deles) que apenas segue uma linha rígida quando a meta é a vitória no estádio.

Transformação: Rodrigo Santoro se supera e entrega sua melhor atuação
“Treino é jogo!”, berrava para seus colegas de time exigindo um maior comprometimento por parte deles. Batia no peito enquanto cantava o hino do Botafogo e se recusava a ficar com o dinheiro do bicho, grana oriunda do público pagante e rateada entre os atletas. “A gente só deveria receber qualquer dinheiro quando ganhasse”, bradava enquanto destruía o vestiário a chutes após perder o título para o rival Fluminense por não ter convertido um pênalti em um momento decisivo do jogo. Essa era a característica que diferenciava a figura de Heleno para os jogadores atuais, cuja, até mesmo, imagem lhes gera lucros. Seu compromisso para com o Botafogo transcendia até mesmo o cuidado com a própria saúde.

Infectado com sífilis, reflexo de sua vida sexual sem limites, Heleno se recusa a fazer um tratamento por julgar que poderá se tornar impotente. Um claro sinal da ignorância por trás da fachada glamourosa do rapaz. Para um homem que tem tudo e cujo interesse principal de vida centra-se em “futebol, cadilacs e cinturinhas”, ganhar o mundial de 1950 vem em primeiro lugar. O resto, inclusive sua saúde, pode esperar. Um erro que, invariavelmente, lhe cobrará um preço caro como veremos ao final.

Meta: esquecendo-se de si, Heleno apenas visa a vitória em campo
Brilhantemente fotografado pelo experiente Walter Carvalho, o filme possui em seu preto e branco características visuais que remetem a Touro Indomável, (não por acaso outra cinebiografia de um atleta de vida conturbada). As imagens dos jogos durante fortes chuvas deixam bem claras as referencias à obra de Scorsese. Outro ponto louvável é a reconstituição de época do Rio de Janeiro. Utilizando imagens de arquivo de um modo que consegue contextualizar bem a primeira metade do século XX, Heleno possui uma eficiente direção de arte e figurino, que retrata de modo satisfatório os personagens naquele momento da história.

Utilizando o futebol como uma moldura para um drama eficiente e uma história de vida fascinante, o diretor José Henrique Fonseca (de O Homem do Ano), capta de forma tocante o drama interno do jogador ao perceber suas chances de conquistar um título ou de jogar no Maracanã irem se esgotando. E com a dedicação de Santoro ao papel, fica difícil não se cativar pela dramática história de vida de Heleno.

Em uma das cenas mais tristes do filme, o vemos observar, pela TV, Pelé durante a copa de 1958. Sua expressão é uma mescla de arrependimento e frustração. Algo que uma vida de excessos fez se tornar sua expressão costumaz.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Entrevista - Walter Carvalho, diretor de Raul: O Inicio, o fim e o meio

Fotos: Cristiana de Oliveira

O diretor Walter Carvalho afirma que, após concluir a pós-produção de Raul – O inicio, o fim e o meio, documentário que esmiúça a vida pública e familiar do mito Raul Seixas, morto em 1989, sentia como se ele estivesse ali, tamanha a presença que o mito do rock nacional é capaz de causar. Também, não é para menos. Após reduzir um material bruto de 400 horas para um produto final de duas horas de duração, Carvalho só poderia, mesmo, enxergar o Raul em todo canto. “Eu queria mesmo era que ele estivesse aqui, dividindo essa barra comigo”, afirmou, durante essa divertida entrevista. Este veterano diretor paraibano que migrou para o Rio de Janeiro em 1968, aos 21 anos de idade, foi testemunha de todo o movimento musical que a cidade simbolizou nos anos 1970 e 1980. Responsável por levar às telas a vida de outro mito da música brasileira, Cazuza, e por fotografar boa parte dos melhores filmes nacionais dos últimos 15 anos, Walter afirma que, assim como aconteceu com o longa sobre o poeta carioca, foi o Raul quem o escolheu para esse desafio. Não diretamente, claro, mas ele diz contar com a sorte para ter essas oportunidades. Foi assim com Cazuza e, agora, ela se repete com Raulzito. Uma coisa é certa: os sortudos são, mesmo, os espectadores que poderão conferir a partir do dia 23 toda a genialidade de Raul Seixas através da óptica desse talentoso diretor. Com a palavra, Walter Carvalho.

Olá Walter! Tudo bem?
Olá, meu querido. Tudo bem com você?

Tudo beleza. Walter, antes de a gente começar a entrevista, eu queria te falar uma coisa. Ano passado, na ocasião da Mostra de São Paulo, eu li uma entrevista sua sobre o seu filme na qual você dizia que era somente o público que iria poder dizer se você deu ou não conta de colocar a história do Raulzito em duas horas de projeção. Olha, o que eu vou te dizer agora não será dito como jornalista, mas, sim, como apenas um bom baiano fã de rock e de Raul: você deu conta, cara. Você mandou muito bem. Ao sair do cinema, confesso que me senti extasiado, realmente muito impactado por aquelas imagens e depoimentos. A minha trajetória de vida teve muito Raul Seixas por causa de meu pai e o momento do filme onde Trem das 7  é ouvida foi a que me causou maior emoção.
Puxa, obrigado. É muito bom ouvir isso. Eu me emociono ao ouvir isso, porque você, mesmo me dizendo que fala não como jornalista, mas você sendo um, acaba possuindo uma visão e leitura muito mais aguçadas do que, normalmente, o espectador comum teria.

Na ocasião da Mostra, você falou, também, que tinha pelo menos quatrocentas horas de material para trabalhar na montagem, transformando-as em apenas duas horas de filme. Qual foi o processo que você e o montador Pablo Ribeiro tiveram que seguir para estruturar tamanha quantidade de material?
Eu estava diante de mais de quatrocentas horas de material. E olha que eu não filmei toda essa quantidade. Eu filmei duzentas e poucas horas, o que já é um absurdo. E juntando com as que eu tinha de arquivo, dava mais de quatrocentas horas. Agora, é preciso que se diga o seguinte: eu fiz 94 entrevistas. Isso é um absurdo em termos de documentário. Essas entrevistas, inclusive, grande parte delas eram de pesquisa. A parte de Salvador, onde eu escutei muitas pessoas, era puramente de pesquisa. Por exemplo, eu não conhecia o Olival (Dias Viana Filho, amigo de infância de Raul). Então, foi preciso fazer entrevistas que serviam, ao mesmo tempo, como pesquisa e como descoberta. O Olival, para mim, é uma descoberta. É um dos melhores momentos do filme por sua espontaneidade e pela revelação que ele faz. O Olival foi a melhor maneira que eu encontrei de dizer por que o Raul gostava de Elvis e por que ele o imitava. Então, respondendo sua pergunta, o que eu fiz foi pegar uma grande folha de papel onde coloquei a foto do Raul no centro e fiz uma série de quadrados em volta da cara dele. Fixei na parede da sala de montagem e fui colocando o nome das pessoas que eu tinha entrevistado com uma linha central que representava o nascimento, a infância e a morte. De um lado, eu tinha a parte, digamos, inicial do Raul, que eram os produtores, a cidade de Salvador, e do outro lado eu tinha a parte familiar. Eu não dividi isso de forma tão intencional, mas, aos poucos, aquilo foi se organizando daquela forma. Então, em um dado momento, eu descobri que estava com um filme que tinha dois planos: o primeiro era privado e o segundo era público. A cortina que conduz o plano privado acontece de forma cronológica. E o plano do público, do Raul artista, ele acontece de forma fragmentada, tanto que eu começo o filme com ele já cantando Luiz Gonzaga, já cantando Let me sing e desenhando no peito com batom a ansata (imagem que ilustra o cartaz do longa). Mas, ao mesmo tempo, ali está acontecendo um outro plano que é o nascimento do Raul, sua adolescência imitando Elvis Presley, sua mudança para Raulzito e seus Panteras na Bahia. Daí ele vai para o Rio de Janeiro, conhece Paulo Coelho, as suas mulheres, seus casamentos, seus filhos e, por fim, sua morte. Ou seja, essa vida privada é absolutamente cronológica: ele nasce e ele morre. O filme não tem medo dessa cronologia. Mas o que a perturba e que é uma coisa da própria cabeça do Raul é a sua vida pública, que ao mesmo tempo que corre junto, ao mesmo tempo elas se cruzam. E tem hora que esse privado vem para frente, tem hora que quem está em evidência é a vida pública. Então, essa é a estrutura narrativa do filme. Como é que eu chego a isso? Exatamente a partir desse núcleo que eu chamei de “genealogia da trajetória”. Eu fui com os nomes de cada pessoa envolvida na vida do Raul escrito nesses quadradinhos (produtores, parceiros, amigos, mulheres), vendo quem tinha relação com o Raul e quem tinha relação entre si. Desse modo, eu fui traçando retas e analisando cada viés. Na ilha de montagem, com meu editor, na solidão de um ano e meio, de seis a oito horas por dia, eu ia cruzando a montagem naqueles assuntos e ia descobrindo coisas. Cada assunto levava a outro viés no papel. Eu ia traçando setas de uma mulher para outra, de um amigo para outro, de uma das mulheres do Raul para um produtor. Quando terminou, se você visse o emaranhado que isso ficou, riscado na parede da sala... (risos). Houve momentos em que eu ia para casa (pausa), cara, eu ia para casa completamente perdido! Quer dizer, não é bem perdido. Eu ia para casa perturbado. Perturbado! Primeiro porque você fica com a voz do Raul dentro da cabeça. Eu, no final da montagem, achava que o Raul estava ali. Eu comecei a achar que eu era amigo do Raul.


E agora? Essa voz do Raul ainda está presente? Ainda mais estando aqui, na terra natal dele.
Eu vou te falar: hoje, quando eu estava no avião chegando a Salvador e olhei lá para baixo, eu tive uma sensação em que precisei me conter. Porque eu queria muito que ele estivesse aqui. Como eu queria que ele fosse enfrentar comigo o que eu vou enfrentar. Hoje, historicamente, eu estou entregando esse filho ao público. A partir de hoje, às 21h30min (horário em que a pré estreia ao público começou), o filme já não me pertence mais. Ele me pertence até às 21h29min. Depois disso, eu não terei mais nenhum poder sobre ele. Acabou. É o público quem vai dizer se eu dei conta ou não da vontade que eu tinha de fazer um filme sobre um mito. Filmar um mito é difícil porque você não tem como defini-lo. Eu inventei um Raul. Eu descobri, encontrei e inventei um Raul. Eu tinha um bloco de quatrocentas horas, como se fosse um sólido, que eu tive que ir arrancando pedaços de tudo que não era o Raul. Eu fui deixando dentro um Raul que eu fui encontrando e, ao mesmo tempo, inventando. Inventando a partir de que? Inventando a partir da memória das pessoas. Eu não tinha memória para saber qual era a relação dele com o irmão.  O que o irmão dele me diz no filme é fundamental. É como se eu tivesse uma colcha de retalhos desorganizada. Colada de forma desorganizada. Quando eu escuto o Plínio (Seixas, irmão de Raul); quando eu escuto a Kika (Seixas, ex-mulher de Raul), o Olival, o Roberto Menescal, o Pedro Bial ou o Caetano Veloso, eu vou organizando esses retalhos até formar uma unidade, ou pelo menos uma harmonia dessa colcha de retalhos como um todo. Esse pano recortado com uma certa organização, é o Raul que eu inventei.

Essa estrutura que você citou traz para o filme algo que é bem notável. O modo como você inseriu as mulheres da vida do Raul, a fase de cada uma delas, e contrapôs opiniões para gerar um diálogo. E o mesmo você fez com os compositores. Há um momento em que você até brinca com essa rivalidade entre Paulo Coelho e Cláudio Roberto (parceiro de Raul na composição de, por exemplo, Maluco Beleza) colocando em um frame uma briga de galo, para apimentar ainda mais essa questão.
(risos) É, veja bem, o que o Paulo (Coelho) é? Ele é um escritor. O quê que eu fiz para perguntar ao Paulo sobre o Raul? Ao invés de chegar lá e perguntar assim “Como foi sua relação com o Raul?”, eu preferi ler os dois primeiros livros do Paulo e encontrei nas páginas relações, vieses, metáforas, analogias dele com o Raul. Então, toda pergunta que eu fazia para o Paulo Coelho, havia uma introdução dizendo “na página tal do seu livro, um personagem toma tal atitude. Essa mesma atitude, você tomou com o Raul em relação ao sistema. Por quê?” Então ele respondia com base no próprio livro. E o que ele faz, além de escrever? Ele é um arqueiro zen. O Cláudio Roberto, o que é? Ele é um cara que mora em um sitio, afastado do Rio de Janeiro duas horas, cheio de galinhas e outros animais, hortas, plantas, um cara que fica deitado numa rede e que cria galos. Ou seja, um atira flechas e o outro cria galos (risos). Então, eu perguntei para o Paulo: ”Paulo, quem é o parceiro mais importante do Raul?” E como ele é uma pessoa extraordinária enquanto inteligência, ele disse:  “O parceiro mais importante do Raul é o próprio Raul“. O resto, que são essas analogias do galo e do arqueiro, fica por conta do espectador. Aí, bicho, aí você é o imponderável. Por que, eu lhe digo, se chega uma mosca em Genève, na Suíça (referindo-se à entrevista dada por Paulo Coelho em sua casa em Genève quando uma mosca interrompeu a conversa), onde, segundo o Paulo, não costuma haver moscas, eu imagino que é uma questão de sorte. Eu sempre digo isso. O documentarista precisa ter um pouco da sorte do goleiro na hora do pênalti. Isso, claro, é uma alusão ao filme do Wim Wenders, O Medo do Goleiro diante do Pênalti. No caso do documentarista, esse medo vem do que pode acontecer durante a entrevista. Algo que, por exemplo, venha a extrapolar sua própria capacidade de investigar. 

A tal mosca durate o papo com Paulo Coelho foi, realmente, surpreendente.
(risos) Bom, imagina só: eu estou diante do Paulo Coelho, o maior vendedor de livros depois do Harry Potter. São mais de 500 milhões de livros vendidos. E, óbvio, existe uma música do Raul chamada “Mosca na Sopa”. Pois então, durante o papo com ele entrou uma mosca e passou a perturbá-lo. Bom, isso é a sorte do goleiro. Agora, o goleiro, além de ter a sorte de pegar a bola, ele tem que lidar com o acaso que é a escolha do lado certo onde a bola vai. Ou seja, o acaso daquele momento da mosca poderia passar despercebido por mim. Mas eu não permiti que isso acontecesse. Eu levei até as últimas consequências, porque eu fui muito ajudado pela sorte. Observe: primeiro apareceu uma mosca. Ele poderia ter assustado ela e continuado a falar, certo? No entanto, ele parou e falou: “Estranho, uma mosca. Não costuma ter mosca em Genève”. A mosca insiste. Aí ele faz o segundo comentário: “É o Raul”. Aí ele faz o terceiro comentário: “Não vou matar”. Ou seja, eu peguei vários pênaltis em uma partida só. Não é qualquer goleiro que pega três, quatro pênaltis em uma partida só. Eu peguei três pênaltis! Uma sorte! Foi algo que Deus deve ter falado assim: “Vou ajudar aquele cara, ali. Vou ajudar ele e o Raul” (risos). E ainda culminou com o Paulo fazendo aquele gesto de matar a mosca. Ele ainda ficou olhando para câmera com a boca aberta querendo rir durante uma fração de segundo suficiente para você não entender o que está acontecendo, algo que, claro, foi para a montagem final. São dessas coisas que o documentarista anda atrás.


Você tem a experiência de ter filmado a vida do Cazuza, e agora você filma o Raul. A vida de Gonzagão está sendo filmada agora pelo Breno Silveira (diretor de 2 Filhos de Francisco). Como um bom nordestino, você gostaria de ter assumido esse projeto?
Olha, eu gostaria muito de ter podido filmar essa história. Infelizmente não tive essa oportunidade (pausa). Curiosamente, estreia agora no final de março um filme que eu fotografei que é o Heleno. O personagem título é um ex-jogador do Botafogo que foi muito famoso e que morreu do mesmo modo que o Raul: cheirando éter. Eu sou o fotógrafo desse filme. Quando eu fotografei o Heleno, eu tinha acabado de terminar a montagem do Raul. E os dois vão ser lançados no mês. Parece coisa combinada com o diretor (José Henrique Fonseca), que é muito meu amigo, mas é uma coincidência curiosa. Dá até para fazer analogias porque os dois acabaram a vida cheirando éter.

Nos filmes que você fotografou, o espectador não consegue enxergar muito facilmente um estilo, uma marca. Eles são bem díspares em relação ao estilo. Para exemplificar, basta observarmos Amarelo Manga, Lavoura Arcaica e Central do Brasil, filmes que, no que se refere à fotografia, são trabalhos muito diferentes. Você costuma ter uma referência própria que sempre insere nos seus trabalhos, ou essa unicidade em cada filme já seria uma marca?
Eu acho que essas características são diferentes porque elas nascem de dentro do filme para fora. Eu, quando comecei a fotografar, ainda garoto, via uma coisa bonita em um filme e guardava aquilo. Aí quando eu ia fazer um filme, eu tinha aquilo em minha lembrança e queria fazer igual porque era bonito, era funcional. Eu estava trabalhando completamente errado. Um dia, eu saquei que era o contrário. Eu tinha era que entender e descobrir a fotografia que eu tinha que fazer dentro do próprio filme. E aí, quando o roteiro é escrito, de alguma forma, querendo ou não, existe uma luz ali dentro. Existe uma imagética ali dentro. As pessoas acham que a função do fotógrafo é iluminar a cena. Mas, não. Não é isso. A função do fotografo é descobrir dentro daquele roteiro, dentro daquele universo daquele argumento, qual é essa luz. Na mesma proporção que o ator tenta descobrir que personagem é aquele. Por isso que o Marlon Brando de O Poderoso Chefão é diferente do Marlon Brando de O Sindicato dos Ladrões.

Ou ainda mais impressionante a diferença dele em O Último Tango em Paris. Assusta ainda mais saber que ambos são do mesmo ano.
São do mesmo ano? Pois é, imagina só. Eu não tinha pensado nisso. Por aí você percebe. O cara em um filme é uma coisa e em outro é algo completamente diferente. Há profissionais que você observa a fotografia deles em algum filme e logo percebe que é um trabalho dele. Isso porque ela remete a ele os códigos que foram vistos em outros filmes. Isso não é uma crítica, friso. Mas é um caminho que eu não sigo. Nos trabalhos que fotografei não dá para acontecer isso porque cada filme tem uma fotografia própria que está dentro dele. Cabe a você descobrir qual é essa imagética. Às vezes eu descubro, às vezes eu chego perto e em outras eu nem chego a descobrir, realmente. Mas a minha busca é essa. Eu não penso na câmera, eu não penso na luz, eu não penso no filtro. Eu sou obsessivo dentro do roteiro. Por que?  Bom, por exemplo, quando um ator entra em um ambiente, uma sala no escuro onde ele acende um abajur, o espectador é capaz de jurar que a luz exibida é oriunda dele. No entanto, aquela é uma luz cinematográfica. A luz do cinema é uma luz que você não vê. Ela está fora de quadro. É uma luz construída, mas, para mentir, por isso que o fotógrafo tem que ser um mentiroso, ele convence o espectador que aquela luz é realmente do abajur. Porque se ele for acendê-lo pura e simplesmente, aquela luz não será útil. Essa imagem, se for feita assim, ela não vale para o filme. Para valer, você precisará inventar uma luz que o filme entenda que aquilo é um abajur de uma sala e que vai clarear o ambiente. Aí é que está a questão da imagética, da visualização, da volumetria dos objetos em relação a sua captação e a sua representação aos olhos de quem assiste.


E o Lula (Carvalho, filho de Walter, fotógrafo do filme Raul – O inicio, o fim e o meio) está seguindo teoria semelhante?
Ah, o Lula está mandando bem pra caramba (risos). Agora mesmo ele está na Espanha fotografando um filme inglês, depois segue para os Estados Unidos. Mas o que eu acho bacana é filmar por aqui mesmo. Digo isso porque estou com saudade dele e não o vejo faz um tempão. Mas ele tá danado, sabe? (risos) O Lula acredita no cinema meio que de uma forma religiosa. Ele jogou a vida dele em cima disso e talvez por isso esteja mandando tão bem.

Na fotografia do Raul, você influenciou o Lula de alguma forma?
Eu influencio muito pouco os fotógrafos com quem trabalho. A minha teoria como diretor é semelhante a de um maestro em uma orquestra ou como um técnico de futebol: quem faz o gol não é ele, quem bate a falta não é ele, quem dá o drible não é ele. Quem sola, ou toca o piano não é o maestro. Mas todos eles estão sob uma regência. Sob uma estratégia, um comportamento que ele coloca para os seus comandados, sejam eles músicos ou jogadores. O diretor de cinema nada mais é do que isso. As pessoas falam muito que o cinema é uma arte coletiva. Não é porque tem muita gente no processo. Eu digo isso porque, por exemplo, eu já estive envolvido em projetos que tinha mais de cinquenta pessoas participando do processo, mas cada uma delas estava fazendo um filme diferente. Não é a quantidade de pessoas que faz o filme ser coletivo. O que torna o filme coletivo é a partitura ser tocada de forma harmônica e conduzida por um maestro que comanda o andamento, o diapasão, o ritmo, o brilho daquela orquestra. O diretor nada mais é do que isso. Portanto, o fotógrafo está para mim assim como o diretor de arte, o figurinista, o técnico de som, o montador. Então, a minha discussão com o diretor de fotografia é essa: nós temos uma série de elementos, certo? Como é que vamos circular entre esses elementos? Como diz o Godard, o cinema não é coisa nenhuma. O cinema é o que está entre as coisas. E essas coisas é o que vai eleger para o fotógrafo. Então, não adianta eu dizer assim para ele: “cara, clareia isso, escurece aquilo”. Eu posso estar até contribuindo de alguma forma, mas eu também posso estar tirando a possibilidade dele fazer uma coisa que eu não conheço. E, claro, eu não posso ser suficientemente capaz de dizer nada para ele naquele momento porque eu estou vendo todo o conjunto. Então é preciso que você ponha a bola para o cara chutar. Se não o filme não se constrói. O Andrey Tarkovskiy (diretor soviético de obras como Solaris, falecido em 1986) falou uma coisa muito interessante no seu livro, Esculpir o Tempo. Ele fala que enquanto o sangue não circular em uma mesma artéria por toda equipe, não haverá filme.

Clique aqui para ler a crítica do filme!

 Trailer de Raul - O inicio, o fim e o meio

domingo, 18 de março de 2012

Anderson Silva: Como água

(Anderson Silva: Like Water, EUA, 2011) Direção: Pablo Croce. Com Anderson Silva, José Aldo, Júnior dos Santos, Ramon Lemos dentre outros.


Nos últimos anos, a mídia esportiva foi invadida por uma nova febre de mercado batizada de MMA (sigla em inglês para artes marciais misturadas). Bancada a peso de ouro pela UFC (Ultimate Fighting Championship), organização que promove os campeonatos de lutas livres em diversos países, essa alegoria do fascínio humano pela violência se tornou conhecida (e apreciada) por pessoas de todo o mundo, gerando um mercado que rende centenas de milhões de dólares para os organizadores.

Claro que Hollywood não ia demorar muito a perceber esse filão. Em tempos decadentes para antigos astros como Jean Claude Van Damme, Chuck Norris ou até mesmo Jackie Chan, abordar o dito “esporte” MMA se tornou razão de pressa para os produtores. Por sorte, os espectadores, até o momento, foram agraciados por duas produções que merecem uma atenção delicada. Guerreiro, filme de 2011 estrelado por Tom Hardy (provando talento antes da superexposição que terá com Batman) e Nick Nolte, indicado ao Oscar pelo papel. Acertando ao focar a relação pessoal e profissional que os lutadores têm com sua profissão, o longa ficcional se assemelha em parte à história apresentada nesse doc., Anderson Silva: Como água.

Comandado pelo estreante na direção de longas, Pablo Croce, vencedor do Festival de Sundance como revelação na categoria documentário, Como água apresenta o sereno e sorridente Anderson Silva, lutador brasileiro, campeão mundial, invicto há quinze combates. Considerado o melhor lutador da história do esporte (palavras do próprio criador da modalidade, Dana White), Anderson foge de muitos estereótipos que o espectador leigo de artes marciais (eu, por exemplo) está acostumado a ver.  Sempre simpático e reflexivo nas próprias declarações, o lutador apresenta um perfil totalmente diverso de seu oponente, o estadunidense Chael Sonnen, cujo confronto pelo cinturão é apresentado como foco principal deste filme.

Silva e Sonnen se encaram na véspera da luta: parte do entretenimento
A produção acompanha o treinamento de Silva durante os meses que antecederam o combate, realizado em 2010. A partir de depoimentos do próprio Anderson e de sua família, amigos, empresário, treinador e colegas de profissão, vemos a construção de um novo ídolo para os aficionados por esse tipo de competição. Equilibrando de forma funcional as personalidades do lutador brasileiro e de Sonnen, o roteiro, escrito a quatro mãos, consegue manipular um antagonismo clássico nesse tipo de filme que, por mais que seja um documentário, possui o mesmo tipo de recompensa para o espectador que obras como Rock ou os filmes do já citado Van Damme trazem no final.

Deste modo, não é com surpresa que percebemos nossa torcida pelo brasileiro que se mantém impassível diante das provocações feitas por seu oponente. Curioso que basta uma reflexão mais aprofundada para percebermos que Soonen apenas cumpre sua parte no jogo de divulgação do evento, algo que, inclusive, é muito bem recebido por patrocinadores e pelo próprio White, dono da competição e que, diga-se de passagem, condena veementemente o comportamento introspectivo de Silva.

Batizados de forma espalhafatosa de “Gladiadores do Século XXI” por Galvão Bueno (bem de acordo com ideia mercadológica de sua empregadora), os lutadores desse dito esporte apenas refletem a psicopatia da sociedade desse mesmo século. Claro, não é necessário manter um discurso hipócrita em negar que a torcida pelo brasileiro é inevitável. No entanto, é o próprio filme que apresenta, através de sua imagem final, com Anderson saindo da luta em uma ambulância, e na declaração de sua mãe, que classifica como “imbecil” a forma do filho ganhar (muito) dinheiro, a melhor definição para esse “esporte”.
   
Observação: Apesar de bem justificado pela introdução de Bruce Lee no começo do filme, Como água acabou sendo uma péssima escolha para o título no Brasil. Já nasce como piada pronta. 

sexta-feira, 9 de março de 2012

Pina

Pina (Alemanha, França, UK, 2011) Direção: Wim Wenders. Com Regina Advento, Malou Airaudo, Ruth Amarante, Rainer Behr, Andrey Berezin, Damiano Ottavio Bigi.


No mesmo ano, os brasileiros foram agraciados com duas das melhores utilizações da tecnologia 3D que dois dos cineastas mais consagrados do mundo trouxeram para o cinema. A primeira, Hugo, dirigida por Martin Scorsese, inovou por conseguir aplicar a terceira dimensão de modo não gratuito, como em várias produções desde a popularização dessa tecnologia na década passada. O cineasta, de forma inteligente, percebeu que o 3D necessitaria de muita profundidade de campo para se fazer presente de forma ideal. O outro diretor a estrear nesse segmento é Wim Wenders, que trouxe para o 3D o primeiro filme-conceito da dança artística.

Pina é um tributo à alemã Philippine Bausch, ou apenas Pina Bausch, coreografa, dançarina e diretora da companhia Tanztheater Wuppertal, falecida subitamente em 2009, ocasião em que, em parceria com Wenders, organizava um documentário ilustrando o balé que dirigia. Com a inesperada morte de Pina, o diretor alemão precisou modificar a ideia central do documentário, mas declarou que a manteve do modo como havia imaginado junto a bailarina. O resultado acabou sendo um magnífico trabalho em homenagem a uma mulher que dedicou a vida à dança e modernizou o balé contemporâneo ao utilizar influências da vida dos próprios dançarinos na criação das coreografias.

A beleza do filme encanta e se valoriza pelo inteligente uso do 3D
Pina, o filme, mostra-se tecnicamente indefectível no conceito que Wenders almejou alcançar. Desde o primeiro momento do filme, quando somos apresentados a cidade de Wuppertal, na Alemanha, e ao local onde a companhia de dança realiza seus números, percebe-se o cuidado do diretor em explorar a profundidade de campo de seus takes de modo a valorizá-los ainda mais por conta do 3D. A presença dos dançarinos no palco torna-se ainda mais impactante. Logo no número inicial, The Rite of Spring, quando a questão da sexualidade é apresentada de modo simbólico e elegante, vê-se os dançarinos encenando o desejo carnal através de respirações ofegantes e do pertinente uso da cor vermelha para representar a libido. O modo como a movimentação da câmera através de travelings parece fazê-la dançar com os corpos dos dançarinos, juntamente com o 3D, tende a querer nos colocar no palco junto a eles.

O filme, também, trabalha de modo interessante as fusões de dentro para fora do palco e vice versa, como no momento em que uma das dançarinas possui o mesmo movimento em diferentes ambientes, tornando elegante o modo como o montador Toni Froschhammer resolveu unir as duas cenas a partir de um peça do figurino do espetáculo. No entanto, é a imaginação de Wenders que surpreende ao utilizar trucagens aparentemente simples de imagem para brincar com o espectador: vide a cena onde o corpo delicado de uma das dançarinas é confundido com o de um musculoso colega de dança. Ou até mesmo a bela referência à passagem do tempo que o número Kontakthof traz, com diversos bailarinos em diferentes faixas etárias que são confundidos em cena com versões mais velhas ou mais novas de si mesmos graças ao eficaz trabalho de montagem e à utilização de diversas câmeras.

O equilíbrio humano é sutilmente trabalhado pelas coreografias 

Fugindo de forma intrigante da fórmula “cabeças falantes” que diversos documentários trazem em sua estrutura, Pina apresenta vários dançarinos da companhia trazendo suas impressões de sua falecida mentora através de expressões faciais e depoimentos em voz over. É surpreendente como, sem apelar para excessivas utilizações de imagens de arquivo ou depoimentos da própria Pina, conseguimos construir a personalidade da mulher idealizadora daquele balé. E é realmente triste perceber a falta que ela faz aos seus discípulos.

Ao final, a reflexão sobre a frase símbolo de Pina Bausch, “Dance dance, otherwise we are lost” é a de que é bem mais recompensador ser feliz através da própria arte e da dedicação que ela exige. 

quarta-feira, 7 de março de 2012

Drive

(EUA, 2011) Direção: Nicolas Winding Refn. Com Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston, Albert Brooks, Ron Perlman, Oscar Isaac.


Em certo momento de Drive, o personagem anônimo de Ryan Gosling  utiliza a velha metáfora do escorpião que pica outro animal que o havia ajudado e se justifica dizendo que não poderia evitar: aquela era a sua natureza. Ao sermos apresentados ao motorista sem nome, percebemos seus trejeitos calculados, sua personalidade monossilábica e a forma como ele parece esconder algo sobre si. E durante todo o primeiro ato do filme, ficamos esperando para que aquela máscara caia. Quando ele afirma, sem precisar aumentar o tom de voz, que vai empurrar os dentes de alguém garganta abaixo, não é com surpresa que descobrimos a verdadeira natureza do rapaz. E quando sua face ensanguentada toma toda a tela, temos a certeza sobre quem é aquele homem.

Drive apresenta-se como um filme lento não no sentido negativo da palavra. Longe disso. Muito longe. O ritmo do filme é conduzido pela constante postura de observador que o motorista mantém sobre a própria vida e sobre a vida de quem o cerca. Ao explicar como funciona seu método de trabalho e o quão irredutível é a sua ideia dos cinco minutos nos quais ficará disponível para seu contratante, já vemos mais uma prova do seu metodismo. Nas palavras do próprio, ele apenas dirige. Não porta armas, não entra em esquemas. Só dirige, levando ladrões do ponto A ao B exibindo com maestria o domínio da arte da fuga. Observar como ele prefere parar ao invés de seguir em disparada salienta o quão calculista é sua visão.

A delicadeza de Irene contrasta de modo gritante com a brutalidade de seu mundo
Ao se envolver com uma mãe solitária (Carey Mulligan), cujo marido está na cadeia, o motorista percebe-se inserido em um mundo que, até então, lhe era desconhecido. Sempre exibindo um olhar de curiosidade acompanhado por um sorriso tímido (a atuação contida de Gosling é mais uma prova de seu talento), sua personalidade encontra uma paridade em Irene e no pequeno Benicio. Os três parecem precisar dessa unidade que o convívio lhes traz. E ver o protagonista observando o trafego da janela do apartamento de Irene, nos faz perceber o quanto ele almeja não ter que voltar para aquele universo novamente.

Com uma trilha sonora setentista e créditos iniciais que parecem ter saído direto dos anos 80, o filme reinventa o gênero da violência urbana de modo a deixá-la impactante sem apelos gratuitos. A montagem econômica traz uma velocidade à trama que dispensa cenas desnecessárias. Observe o momento em que Irene precisa da ajuda do motorista. Em dois cortes e sem nenhum diálogo, entendemos toda a sequência.  Usando de modo eficaz a edição de som, as cenas onde a brutalidade do filme é exibida causam ainda mais impacto. Principalmente a cena que se passa em um elevador. Vemos por apenas um brevíssimo momento o que está acontecendo, mas o som está presente de modo a nos fazer perceber exatamente o que ocorrera com o homem que cruzou o caminho do anti-herói.

Louvável ver um filme capaz de elevar a um patamar de qualidade tão notório o conceito de violência não estilizada. A sua presença consta como algo intrínseco à trama, não como uma alegoria. E quando vemos o motorista caminhando naturalmente na rua com seu habitual casaco branco tingido de sangue, percebemos como ela faz parte de sua natureza. O escorpião em sua costas lhe cai muito bem.