quinta-feira, 28 de julho de 2016

Jason Bourne

(EUA, 2016) Direção Paul Greegrass. Com Matt Damon, Tommy Lee Jones, Alicia Vikander, Vicent Cassel, Julia Stiles.


Por João Paulo Barreto

Após a sequência filmada na estação de trem Waterloo, em Londres, a qual rendeu o Oscar de melhor montagem para Christopher Rouse por seu trabalho em O Ultimato Bourne, imaginar que a parceria do montador com o cineasta Paul Greengrass poderia superar tamanho esplendor técnico era algo desafiador. Em Jason Bourne,novo capitulo da saga do herói em busca do seu passado,  essa possibilidade foi alcançada.

Ao preferir batizar o longa apenas com o nome do seu protagonista, os realizadores dão o tom desta última parte, colocando-o como uma força motriz em busca de retaliação contra as pessoas que lhe retiraram tudo. Sem Identidade, sem supremacia e seu nenhum ultimato. Nesse mais recente episódio (o que não deve ser encarado como último), o personagem de Jason Bourne age de modo instintivo, buscando apenas causar dor e morte àqueles que o construíram do modo como ele é.

Rosto sem passado: Jason Bourne confronta a si mesmo
Aqui, temos o homem novamente às voltas com suas memórias perdidas e em busca de respostas para seu passado como o agente assassino a serviço do governo estadunidense. Ao nos colocar diante de peças familiares de Bourne (ou David Webb), o filme acerta por mostrar ao espectador uma face mais intima daquele personagem. Então, quando seu pai é trazido à tona como um dos pontos catalisadores para explicar o que ele é hoje, o roteiro escrito pelo próprio montador em parceria com Greengrass acerta ao denotar o quão frágil emocionalmente se tornará o personagem, uma vez que até mesmo sua base familiar lhe foi retirada, deixando-o apenas com a sua vida de agente militar como algo a que se apegar.  

E tudo lhe é retirado, mesmo. Aliás, é válido observar a quadrilogia Bourne justamente como um estudo do modo como as perdas físicas e psicológicas deste personagem o afetam. O vemos perder sua amada Marie na segunda parte, algo que contribuiu não somente para sua ira calculada, mas para torná-lo ainda mais pragmático em seus atos. Aqui, outra perda lhe é desferida de modo doloroso, e quando a descoberta de que até mesmo sua família pode fazer parte do espiral autodestrutivo que sua vida representa, não lhe resta muito pelo que lutar, a não ser puramente por vingança. Calculada e pragmática, mas, ao final, apenas a pura e simples vingança. E é ainda mais interessante perceber como a tal fragilidade emocional não o afeta em seu pragmatismo.

Bourne e Nicky Parsons: reencontro trágico
Como antagonista direto, Vincent Cassel interpreta o agente de mesmo nível de Bourne. Com a única diferença de que, ao contrário dos rivais anteriores, uma questão pessoal o motiva a querer matá-lo. Nessa busca, o primeiro local onde os dois se encontram é na Atenas atormentada por conflitos civis. E é neste ponto que retorno ao começo dessa crítica ao abordar como a excelência da montagem de Rouse e o domínio técnico da direção de Greengrass se fazem perceptíveis. Com a diferença de usar um espaço aberto e isso poder lhe propiciar (ou não) mais liberdade na construção do ritmo do longa, montador e diretor criam uma narrativa rápida e eficiente, sem confundir o espectador, guiando-o através de uma linha temporal que culmina em um final emocionalmente impactante. Uma notável superação da citada cena de Waterloo vista no terceiro exemplar da franquia.

Além disso, é curioso observar como em Jason Bourne Greengrass se permitiu ousar mais (leia-se: chutar o balde, mesmo). O ponto de maior percepção neste sentido está em seu desfecho nas ruas de Las Vegas, quando uma fuga e perseguição pelas ruas repletas de veículos servem de cenário para uma catártica destruição. E o filme se mostra atualizado com o contexto paranóico do mundo moderno, ao citar os vazamentos orquestrados por Edward Snowden em comparação com certas descobertas que um hacker faz das novas operações orquestradas pela CIA, como a Treadstone e a Blackbriar, vistas nos longas anteriores.

Cassel: o matador sem nome que se equipara a Bourne
Na presença de Alicia Vikander no papel de uma suposta aliada de Bourne dentro da CIA, um tom de arrogância e mais pragmatismo é inserido pela personagem. Além dela, o burocrata a liderar todo o plot da vez encontra na face de Tommy Lee Jones a presença ideal de desconfiança. Após Chris Cooper, Brian Cox e David Strathairn vestirem personagens semelhantes, é interessante notar como o rosto marcado de Jones se adequa bem ao papel de conspirador.

Ao final, com um gancho ambíguo para uma possível reviravolta em uma futura quinta parte (sim, desconsidere O Legado Bourne), espera-se apenas que a repetição constante destes elementos não torne Jason Bourne um personagem tão previsível quanto James Bond.

Mas, se observamos o que foi apresentado aqui e nos outros dois filmes dirigidos por Greengrass, as chances disso acontecer são nulas.

Vikander e Jones: a face da CIA corrupta dentro do universo Bourne



A Incrível Jornada de Jacqueline

(La Vache, França, 2016) Direção: Mohamed Hamidi. Com Fatsah Bouyahmed, Lambert Wilson, Jamel Debbouze.


Por João Paulo Barreto

É curiosa a atração que o cinema tem pelos underdogs. Diversos filmes já abordaram uma história que traz alguém cujas chances de conseguir êxito em uma missão auto-imposta são mínimas, mas que, nesse intento, acaba por cativar personagens descrentes e, claro, o espectador. Vide Forrest Gump ou, mais recentemente, Eddie theEagle. Curiosamente, é uma fórmula que raramente erra no sentido de causar empatia entre o público e o protagonista.

O mais novo exemplar desse tipo de filmografia é o francês A Vaca (tradução literal do La Vache, que no Brasil ganha um título fácil para o público: A Incrível Jornada de Jacqueline.) Aqui, Fahad, um agricultor da Argélia, tem no amor e cuidado com a sua vaca (a Jacqueline do título) sua motivação para o trabalho com o animal leiteiro. Após anos de tentativas de inscrições frustradas, Fahad recebe um convite dos organizadores da feira agropecuária de Paris para exibir seu bicho de estimação no evento. O único detalhe é que a feira não banca os custos da viagem, e Fahad decide ir a pé da Argélia à Paris.

Fahad e Jacqueline: ongo trajeto da Argélia à Paris
No trajeto, o homem passa por diversos percalços. E é justamente no apelo cômico das situações nonsenses em que ele se envolve que se resume os pontos positivos desta obra sem grandes ambições. Além disso, o filme traz curiosas observações acerca dos costumes argelinos em relação a aspectos banais, como o tratamento carinhoso de um marido para com sua mulher (o momento em que Fahad decide escrever uma carta de desculpas à sua esposa define bem) ou a relação que possuem tais pessoas com a atual situação da França no que se refere ao terrorismo (a frase “Je suis Charlie” é ouvida em alguns dos momentos cômicos do longa.)

Focando não somente na situação delicada dos imigrantes em relação à permanência na França, os quais o filme parece colocar em situações semelhantes vendendo artigos telefônicos para ligar para seus países no oriente ou trabalhando com quinquilharias da China, o longa também aborda o problema econômico que também afeta os próprios franceses. Vivendo atrás de um título de conde, o personagem de Lambert Wilson é um exemplo. Sendo um dos que ajudam Fahad em seu intento, o nobre sem dinheiro claramente tem em sua origem familiar apenas um disfarce para a verdadeira situação de quebra financeira que vive, mas que evita deixar transparecer.

Fahad ao lado do Conde falido Philippe e de seu cunhado, Hassan
Trata-se de uma obra que tem no carisma e inocência de seu protagonista seu grande trunfo. Um meio eficiente de conquistar o público por conta de seu modo sincero de agir, tornando seu plano, apesar de descabido para muitos, sua verdadeira razão para se manter fiel a ele. Descoberto por uma repórter, se torna um fenômeno de mídia, virando notícia em toda a França, em mais um eficiente estudo que o filme se propõe a fazer no sentido de analisar o modo como a sociedade parece necessitar de ídolos e de pessoas que a inspirem.

Mesmo não sendo totalmente integro em seus atos (o suborno pago a um funcionário público mostra bem isso), Fahad se transforma justamente em um ídolo. Do mesmo modo inspirador como Forrest Gump parecia atrair a todos em sua corrida sem motivo pelos Estados Unidos, Fahad parece fazer o mesmo. A diferença está apenas em seu intento final, que, ao subir dos créditos, percebe-se ser bem mais do que apenas uma feira agropecuária.

Um filme inofensivo, mas bastante enriquecedor. 

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A Lenda de Tarzan

(The Legend of Tarzan, EUA, 2016) Direção: David Yates. Com Alexander Skarsgard, Christoph Waltz, Samuel L. Jackson, Margot Robbie, Djimoun Hounson.


Por João Paulo Barreto

É inegável que tenha havido certo preconceito com a proposta de se atualizar o herói Tarzan para o século XXI. Até mesmo este escriba aqui ficou com um pé atrás quando soube que a produção havia recebido o sinal verde e que seria ambientada não como uma introdução, mas como um retorno do personagem às suas origens africanas. No entanto, o que parecia uma ideia um tanto descabida, começou a fazer sentido no momento em que as primeiras imagens de Alexander Skarsgard no papel do herói surgiram e, claro, quando o primeiro trailer foi divulgado. E todo preconceito acabou caindo por terra na sessão onde a nova aventura não só convenceu, como até empolgou.

A ambientação escolhida pelo diretor dos quatro últimos filmes do Harry Potter, David Yates, demonstrou-se acertada ao centrar o primeiro ato da trama na Londres do começo do século XX, denotando, assim, uma eficiente recriação de época ao exibir a capital inglesa na sua transição entre rural e urbana. No período em questão, o império belga começa a levantar suspeitas de escravidão no Congo africano e um emissário dos Estados Unidos (Samuel L. Jackson) decide persuadir o já aclimatado e urbano John Clayton, vulgo Tarzan, a retornar à selva no intuito de ajudá-lo na investigação sob a autoridade de emissário do Parlamento Britânico.

Jane e John Clayton, vulgo Tarzan: o lar os chama de volta
No papel de vilão está o já acostumado à função (e precisando se reinventar) Christoph Waltz, que interpreta Leon Rom, militar belga que caça diamantes e faz um acordo com Mbonga, o chefe de uma tribo local (Djimon Hounson) no sentido de lhe entregar as pedras em troca de Tarzan, com quem o líder possui uma dívida de sangue a coletar. A trama, apesar de girar em torno do resgate de Jane (Margot Robbie), que acaba por acompanhar Clayton em seu retorno ao continente africano, tem no reencontro de Tarzan com suas origens e no modo como isso é apresentado ao espectador através de eficientes flashbacks, bem como em atuais momentos emocionais e tensos, seus pontos altos.

A começar pela cena em que Clayton reencontra uma família de tigres com quem cresceu. O que pareceria um momento que beiraria ao ridículo, acaba sendo exibido com uma ternura que mostra, já em seu primeiro contato com a África onde cresceu, a importância do local para ele. No decorrer dos acontecimentos, o filme opta por inserções ocasionais (e bem localizadas) da origem de Tarzan, que teve seus pais mortos por gorilas e acabou sendo adotado ainda bebê por uma das fêmeas do bando. Nesse retorno, o filme acerta ao exibir o conflito entre o homem e seu irmão gorila, em uma tensa cena de luta, na qual os ferimentos de Tarzan recebem uma curiosa forma de se aplicar pontos usando formigas.

Sam L. Jackson funcionando bem como escape às vezes cômico do filme
Visualmente eficiente, com sequências de voo entre os cipós realmente impressionantes (e que lembram a animação Tarzan que a Disney lançou em 1999), o longa, apesar de inegavelmente parecer artificial em uma das passagens envolvendo uma debandada de animais, tem um saldo final positivo no que se refere aos seus efeitos especiais. Além disso, Skarsgard se firma como uma ótima opção para encarnar heróis de filmes de ação, acertando, aqui, ao manter seu personagem dentro de uma atuação contida, de poucas palavras, o que condiz com a sua origem.

Apesar de se manter como uma história realizada a partir da visão do colonizador europeu e sua ingerência na vida das tribos que deseja dominar, sendo necessário um herói branco para que a vida daquelas pessoas não corra riscos (vide o momento em que Tarzan liberta escravos de um vagão de um trem), A Lenda de Tarzan acaba por entregar o que promete. Uma aventura que não ofende a inteligência do espectador, um protagonista convincente em suas ações e motivações, um acompanhante que apresenta seus momentos cômicos em ótimas sacadas de escape do filme, além de um final catártico no qual espectador é bem recompensado.

O que há para se odiar tanto em um longa assim?
  

O também herói Chefe Mbonga (Houson): motivação justa para vingança

Life - Um Retrato de James Dean

(Life, USA, UK, 2015) Direção: Anton Corbijn. Com Robert Pattinson, Dane DeHann, Peter Lucas, Joel Edgerton, Ben Kingsley.



Por João Paulo Barreto

O mais significativo acerto de Life – Um Retrato de James Dean está na escolha do diretor Anton Corbijn e do roteirista Luke Davies em apresentar a lenda do jovem ator morto aos 24 anos de um modo que, apesar de descortinar suas falhas e inseguranças, mantém a sua personalidade intrigante para, aos poucos, inserir o espectador na vida pessoal e repleta de fragilidades emocionais de um mito.

Trata-se de uma construção lenta do personagem, que vai tendo suas camadas desvendadas ao espectador pouco a pouco para, em uma declamação poética final, ser desnudado por completo.

Aqui, conhecemos Dean no período logo após o lançamento do clássico de Elian Kazan, Vidas Amargas, de 1954, meses antes do inicio das gravações de Juventude Transviada, o filme que o transformaria em um ídolo mundial. Na esteira do sucesso da obra de Kazan, Dean começa a ser visado pela Warner Bros. (Ben Kingsley roubando a cena no papel do chefão Jack Warner) e é quando o fotógrafo Dennis Stock (Robert Pattinson) se aproxima do astro ao perceber estar diante de ícone que ainda não estourou para a fama.

Stock (Pattinson) e Dean (DeHaan) na recriação da icônica imagem 
O filme trabalha de modo bem natural a amizade dos dois homens. As dúvidas de James Dean em relação ao seu próprio talento e os problemas pessoais de Stock, ele mesmo com pouco mais de vinte anos, divorciado e distante do seu filho pequeno, se contrapõem no drama dos dois protagonistas. No entanto, é ao adentrar nas neuroses e ansiedades de Dean que o filme começa a engrenar.

Convencido após longa insistência por parte do fotografo, o ator cede e se permite fotografar em sua rotina em Nova York, local de origem de sua carreira no teatro e que decide revisitar. As lentes de Stock capturam Dean em suas atividades comuns, como a ida ao cabeleireiro, uma visita ao Actor Studios, local onde tomou aulas de atuação com o criador do lendário Método, Lee Strasberg, e um flagra de bebedeira ao ser capturado dormindo bêbado à mesa de um bar em uma noite de dança que incluiu passos com a eterna Mulher Gato do seriado sessentista do Batman, Eartha Kitt, em uma bela cena tributo.

Capturando o astro em sua intimidade
Famosas pela sua iconicidade, as fotos mais representativas de James Dean são as capturadas por Stock em Times Square e na fazenda onde cresceu o rapaz, em Indiana, local que revisita na companhia do fotógrafo, nos momentos de maior beleza do filme, por apresentar o jovem mais à vontade por estar com sua família. Nesta aproximação da vida privada do ator, o roteiro de Davies denota seu ponto alto. Ao trazer à tona a dolorosa lembrança de ter perdido a mãe aos nove anos (fato que nos é apresentado em um belo dialogo em um vagão de trem), o filme nos permite adentrar nas camadas daquela personalidade, desnudando a imagem de mito que o garoto começava a construir e que, tragicamente, alcançaria níveis absurdos nos meses seguintes.

Falhando ao preferir se manter isento de polêmicas ao não abordar o lado gay do ator no suposto caso que teve com Marlon Brando e preferindo focar apenas no romance com a atriz italiana Pier Angeli, o longa até consegue superar essa falha por conta do modo profundo como trouxe à tona o lado traumático e afetado pela perda sofrida na morte da mãe em sua infância.

DeHaan e sua atuação minimalista
Nessa construção do personagem, Dane DeHaan cria sua versão de James Dean beirando a perfeição. Com seus olhos cansados, às vezes tomados por gritantes olheiras, voz pausada e postura um tanto curvada, o ator transmite a tal insegurança do rapaz que parecia desconfiar do quão grande ele viria a se tornar e temia tamanho fardo a ser carregado, mesmo tendo desejado aquilo desde o seu primeiro momento em Nova York após ter deixado Indiana.

Em sua última cena, ao recitar o poema We must go home, do poeta James Whitcomb Riley, nascido na mesma Indiana do astro, ele observa as montanhas da janela de um avião a caminho de Los Angeles. Não percebendo ter sido a ida a Indiana junto a Stock sua última visita ao lar, James Dean nota mãe e filho nas poltronas ao lado da sua e os observa com ternura.

Demoraria, no entanto, poucos meses para ele, realmente, voltar para casa de forma triste e definitiva.  

Dois Caras Legais

(The Nice Guys, EUA, 2016) Direção: Shane Black. Com Russell Crowe, Ryan Gosling, Angourie Rice, Kim Basinger.


Por João Paulo Barreto

Shane Black tinha uma fama de roteirista de qualidade que o precedia quando estreou na direção de seu primeiro longa metragem em 2005. Na ocasião, Beijos e Tiros foi recebido de forma calorosa por seus diálogos rápidos, direção dinâmica, excelente química entre os protagonistas (Val Kilmer e Robert Downey Jr. estavam perfeitos em seus papeis) e uma trilha sonora inspirada. Black conseguira acertar novamente na criação de personagens marcantes, algo que havia feito de modo inspirado quando deu vida à dupla de policiais Martin Riggs e Roger Murtaugh vivida por Mel Gibson e Danny Glover no já clássico Máquina Mortífera.

Com uma recepção fria do seu regular Homem de Ferro 3, foi com curiosidade que acompanhei a sessão de Dois Caras Legais, seu novo filme. E, de fato, Black não decepcionou. Voltando à fórmula que o consagrou, ao unir dois protagonistas dispares e que têm justamente nessa química de opostos o que realmente os torna interessantes para o público, o diretor e roteirista encontra em Russell Crowe e Ryan Gosling a dupla ideal para gerar boas piadas em momentos inspirados.

March pego um tanto desprevenido por Healy
Ambientado em 1977, período no qual as luzes de neon e a música disco dominavam qualquer ambiente pop (algo muito bem utilizado pelo filme, friso), Shane apresenta os dois protagonistas nos papéis de detetives particulares que se unem para solucionar um caso de desaparecimento de uma jovem atriz pornô que parece estar envolvida em um complô relacionado à mafiosa indústria automobilística de Detroit, pólo americano na construção de carros.

Seguindo as pistas do seu desaparecimento, o roteiro escrito por Black em parceria com Anthony Bagarozzi, usa as investigações como pura desculpa para destrinchar suas falas espertas em velozes diálogos, o que funciona muito bem quando temos um personagem durão e violento como o Jackson Healy, de Crowe, fazendo dupla oposta com o abobalhado Holland March, de Gosling. Nessa boa química, as conversas entre os dois entregam os melhores momentos, como quando Healy conhece March e decide conseguir informações de modo não muito pacifico, ou quando este é pego desprevenido no banheiro, o diretor opta por uma rápida, porém eficiente, gag visual envolvendo a porta do toalete e um cigarro.


"Hey, vocês querem ver meu pau?" "Não, garoto, não queremos ver seu pau."
Com uma excelente recriação de época ao inserir os anos 1970 em suas referências musicais e visuais, além, claro, na abordagem da indústria pornô do período, o que lembra um pouco o que vimos em Boogie Nights, de Paul Thomas Anderson, Dois Caras Legais acerta principalmente por seu perfil descompromissado, sem que isso queira dizer que se trata de um filme de roteiro preguiçoso. Sua história, inclusive, chega a ficar um tanto confusa em certo momento por conta da inserção de reviravoltas e personagens em excesso, mas nada que prejudique o resultado.

No final, a impressão é a de que os realizadores se divertiram no processo de criação tanto quanto o público se diverte conferindo aquela trama. Com a junção perfeita de Crowe e Gosling nos perfis bad cop, good cop (a cena em que eles interrogam um barman é hilária), e os diálogos exatos de Black (“Dad, there are whores here, n’stuff”, “Don´t say n’stuff. Just say, Dad, there are whores here”, March corrigindo a filha), percebe-se o acerto na escolha dos dois.

Boas risadas no melhor estilo Shane Black são sempre bem vindas.


segunda-feira, 18 de julho de 2016

Entrevista: Patrick Lapp (La Vanité)

O ator Patrick Lapp na pele do arquiteto David Miller
No papel do arquiteto amargurado e decidido a morrer, David Miller, o veterano ator Patrick Lapp repete em La Vanité a parceria com o diretor Lionel Baier, com quem trabalhou em Longwave – Nas ondas da revolução, filme de 2013. Dessa vez, uma performance mais carregada em um filme que flerta sutilmente com a tragicidade cômica. Decidido a morrer no quarto barato do hotel que projetou, David acaba por encontrar na curiosidade de se conhecer melhor certos indivíduos, uma razão para ficar por aqui um pouco mais e adiar seus planos de eutanásia. Sobre essa opção básica do ser humano e na ideia de que consegue atuar do mesmo modo que uma criança faria, Patrick Lapp, um homem de poucas palavras, mas de opiniões firmes, conversou com o blog Película Virtual no breve papo que você confere abaixo.

Por João Paulo Barreto

Havia alguma preocupação ou dúvida na abordagem de um tema tão complexo quanto a eutanásia na construção do seu personagem para o filme?

Sabe, na Suíça, a eutanásia assistida é aceita de forma legal já há três ou quatro anos. O nome da associação responsável pelo serviço é EXIT. Pessoalmente, eu estive presente quando minha tia morreu com a presença e assistência da EXIT. Foi algo simples e rápido. Após isso, era algo bem simples para David Miller fazer.

Há uma questão curiosa sobre a morte eo fato de que ela deveria se uma escolha pessoal e individual. “Eu escolho quando eu quero partir”. Qual sua opinião sobre isso?

É possível demonstrar escolhas para muitas coisas. Mas, com a morte, você precisa ser muito cuidadoso. Ela gosta de fazer piadas e de brincar com suas escolhas e sonhos. A morte é a melhor amante dominadora.

Ao lado de Valérie Donzelli, em cena de Longwave - Nas ondas da revolução


Esta é a sua segunda colaboração com Lionel Baier. Há uma boa conexão entre você e ele no set e podemos perceber uma boa química desde Longwave – Nas ondas da revolução. Podemos esperar por outros projetos com vocês trabalhando juntos novamente?

Eu gostaria muito de trabalhar de novo com Lionel. Espero que não tarde muito, porque eu estou muito velho...

David Miller e o senhor compartilham quase a mesma idade. Havia outras similaridades entre ele e o senhor?


Eu atuo como uma criança. Por exemplo, uma criança pode brincar fingindo se um rei. Quando chega a hora de ir para cama, ela coloca o rei em uma gaveta e volta a ser ela mesma novamente. Para mim, é a mesma coisa com o David Miller.

David, em seu último momento, encontra dois bons amigos que valem a pena seu esforço para ficar mais um pouco no mundo. Em tempos em que a xenofobia é mostrado tão evidente na Europa, há uma questão muito importante: o fato de que os estrangeiros estão ajudando uns aos outros . O que você acha sobre este boa abordagem do filme?

Eu não acredito na fraternidade humana… mas, com a proximidade da morte, talvez.


Entrevista: Lionel Baier (diretor de La Vanité)

O diretor suíço Lionel Baier
Lionel Baier traz em seu novo filme uma brilhante análise acerca da morte e da decisão pessoal de cada um quanto ao momento de partir. Eutanásia parece não ser um tema muito fácil de se lidar. No entanto, em La Vanité, filme exibido em Cannes no ano passado e no Festival Varilux desse ano, o jovem diretor consegue criar, a partir de um trio de personagens, uma obra rica em significado, repleta de camadas em sua proposta e que, apesar de flertar com o humor, não se entrega de modo gratuito às piadas como meio de fuga para a abordagem pesada de seu drama. É uma obra que mescla bem esse equilíbrio, trazendo para o espectador uma reflexão genuína acerca de um tema tão complexo. Sobre as escolhas de nuances de comédia, xenofobia na Europa e o a escolha exata dos seus protagonistas, Patrick Lapp (que tem seu segundo trabalho com o diretor) e Carmen Maura (musa de Almodóvar em diversos filmes), o Película Virtual conversou o com diretor. O papo você confere abaixo.

Por João Paulo Barreto

Em seu filme, há uma questão curiosa sobre a morte e o fato de que o momento de partir deve ser uma escolha individual e pessoal : "Eu escolho o momento em que quero partir ". No entanto, aqui, apesar de a questão complexa, há um humor sutil, uma leveza na sua abordagem. Poderia explicar um pouco sobre essa opção ?

Ernst Lubitsch disse algo assim: “quando a época é muito difícil, é o momento perfeito para dirigir uma comédia”. O humor é a forma mais poderosa de inteligência. É a maneira perfeita para expressar sentimentos e emoções complexas. Eu não queria adicionar o drama ao drama.

Em tempos em que a xenofobia é vista de modo tão evidente na Europa, há uma questão que seu filme aborda de forma bem sutil: a relação entre os estrangeiros que estão ajudando uns aos outros. Quando vemos uma mulher espanhola, um rapaz eslavo e um idoso France sem uma cooperação mútua, é inevitável não pensar sobre a situação real que atualmente passa o continente. Foi intencional inserir esta abordagem no roteiro?

Sim, porque é uma realidade em Lausanne, cidade onde o filme foi rodado. Eu cresci entre os estrangeiros e isso me ajudou a construir minha identidade. Na minha cidade natal, mais de 50 % da população vem do exterior, como a minha família também. Eu tenho algumas raízes polonesas, inclusive. É importante dizer que esta sociedade mista é uma oportunidade de crescimento para a Europa, não é um perigo.


E a pintura de Holbein na parede do quarto, com elementos que falam acerca da divisão da Europa, corrobora essa ideia de unidade tão necessária ao período atual.

Com certeza!

Há, também , a questão sobre a depressão e tristeza do protagonista, que desiste da luta 
pela vida e acaba preso às suas lembranças do passado . No entanto, apesar da gravidade do tema, o seu filme tende a nos faz sentir muito otimistas sobre David Miller e sua vida. No final, tudo o que ele realmente queria era morrer em paz, sem sentir qualquer dor. Isso nos traz um sentimento muito confortável sobre sua última trajetória.

Isso é devido ao talento dos atores. Eles dão o tom exato para o filme. Patrick Lapp e Carmem Maura sabem como lidar com o humor e com a tristeza em uma mesma cena.

Nós podemos dizer que se trata da história de um homem em busca de redenção que coloca nisso um disfarce para sua própria morte?

Redenção não é a palavra certa. Quando David Miller chegou ao hotel, ele só esperava poder morrer do jeito que ele queria. Mas os acontecimentos da noite ganharam vida dentro daquele quarto sombrio. É como se a vida estivesse lutando contra ele. Em seguida, Miller descobriu que ainda possuia curiosidade para com os outros presentes. Isso é não estar completamente morto.

La Vanité

(Suiça, França, 2015) Direção: Lionel Baier. Com Patrick Lapp, Carmen Maura, Ivan Georgiev.


Por João Paulo Barreto

Em La Vanité, o diretor Lionel Baier propõe uma sutil, porém não menos tocante, reflexão acerca da efemeridade da morte e do modo como a escolha do momento dessa passagem deve recair unicamente no próprio individuo diretamente afetado por aquele fato. É um filme que, apesar de abordar um tema de tamanho peso como a eutanásia, consegue fazê-lo de forma muito delicada e dotado de um humor que se faz presente sem a necessidade de apelar para histrionismo ou piadas fora de timing. E na escolha teatral de situar seus personagens em cena, somando a isso os enquadramentos exatos dos cenários e elementos em quadro, a obra prima por uma elegância notável.

Na história, David Miller (Lapp), um senhor de 70 anos com câncer, decide procurar uma agência que oferece serviços de eutanásia. Ao se hospedar no hotel projetado por ele e pela esposa décadas antes, aguarda pela mulher que fará o serviço (Carmem Maura no papel de Esperanza, um nome muito pertinente) e pelo filho para servir de testemunha. Quando este decide não participar, cabe a Treplev (Georgiev), um garoto de programa eslavo que trabalha no quarto ao lado servir neste papel.

Esperanza, Treplev e David: cooperação mútua na morte
Em sua aproximação acerca da morte, La Vanité acaba por apresentar camadas curiosas. Ao abordar um tema tão pesado quanto a eutanásia, o modo sutil como o diretor Lionel Baier mescla elementos cômicos à sua proposta, sem necessariamente levar o espectador às gargalhadas abertas ou mesmo aos sorrisos nervosos, cria um equilíbrio no contar de sua história. Isso acaba por aprofundar o espectador em uma reflexão sobre o assunto sem que qualquer tentativa de manipulação através do drama o leve a conclusões direcionadas.

No seu roteiro, Baier cria perguntas pertinentes sobre o direito de cada uma possuir autonomia sobre sua própria vida. Em suas respostas, o filme apresenta uma conclusão simples e sem se basear em clichês do tipo “enquanto houver vida, há esperança”. Não. Aqui, a liberdade de David é, na melhor forma sartreana, o que o condena nas suas escolhas. A sua decisão não se apóia em razões centradas na desesperança ou em qualquer caminho melancólico. Ao se basear no pragmatismo, o protagonista segue a opção que lhe parece mais lógica diante de uma vida sem perspectivas. O único porém está no modo como  ele se torna dependente das pessoas ao seu redor e na forma como estas lhe despertam a curiosidade, tornando, assim, a morte menos atrativa.

David e os percalços para conseguir morrer em paz
Do mesmo modo, em outra curiosa camada de seu filme, Baier é bem oportuno ao abordar um tema infelizmente atual na Europa: a xenofobia. Não que seus personagens apresentem esse perfil ou que o filme busque se basear no maniqueísmo para tratar tal assunto. Aqui, o roteiro segue em uma linha de denúncia bem de acordo com a sutileza de sua mensagem. Ao inserir três personagens europeus em cooperação mutua, mesmo que em nome da morte de um deles, a obra faz uma eficiente abordagem da questão que atormenta a Europa no que se refere ao preconceito xenofóbico. No quadro Holbein, Os Embaixadores, exposto no quarto, a rima visual perfeita para comprovar essa intenção do longa. Com seu crânio (ou em francês, Vanité) escondido de forma evidente na tela, o filme entrega uma de suas melhores tiradas envolvendo o modo como Treplev o enxergou da primeira vez.

David Miller acaba sendo um personagem deslocado do seu próprio tempo. Ao revisitar a época de ouro da construção de seu hotel, percebemos seu principal incômodo ao notar-se  fora de sua época. Viúvo, cabe-lhe apenas reminiscências. Sem uma boa relação com o filho adulto, lembranças do modo como a repugnância regia seus dias como pai de um bebê, anos atrás. Pronto para abraçar a morte, acaba por encontrá-la de um modo que não esperava.

No cinema, diversos simbolismos podem representá-la. Aqui, o ato de colocar um gorro na cabeça de um boneco de neve encerra de forma brilhante aquela percepção.

A obra de Holbein, Os Embaixadores, e sua misteriosa figura central


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Abrigo Nuclear

(Brasil, 1981) Direção: Roberto Pires. Com Roberto Pires, Conceição Senna, Norma Bengell, Ronny Pires, Antonio Fontana dentre outros.


Por João Paulo Barreto

Primeira ficção científica da história do cinema brasileiro, Abrigo Nuclear, longa metragem lançado pelo baiano Roberto Pires em 1981, permanece, 35 anos depois, como uma obra insuperável no aspecto da inventividade e originalidade do fazer cinematográfico. Desbravador do cinema da Bahia, Pires é o responsável, também, por Redenção, de 1955primeiro filme realizado no estado. Filmado com a lente Ingluscope, criada pelo próprio cineasta, o longa demonstra o pioneirismo e o perfil inventivo do realizador.

Realizado com poucos recursos, Abrigo Nuclear levou vários anos para ser finalizado por conta dos problemas financeiros enfrentados por seu diretor. Longe de qualquer preciosismo, não é um exagero afirmar que se trata de um filme símbolo do cinema baiano. Não somente pela luta do cineasta para vê-lo concluído, mas, também, pelo aspecto criativo e pelo esmero de sua produção na criação de cenários futuristas, controle espacial de seu cenário e da utilização de figurantes.

Na história, a população da terra, por conta da radiatividade contida na atmosfera, precisa ser mantida em imensos abrigos. Governados com punho de ferro pela autoritária Avo (Conceição Senna), que esconde o fato de que os humanos um dia habitaram a superfície, a comandante não concorda com a ideia de que se faz necessário uma nova fonte de energia, no caso, a solar, em lugar da atômica. Ao se perceber que os depósitos de lixo atômico estão saturados e a ponto de explodir, o rebelde Lat (vivido pelo próprio diretor) decide por em prática seu plano junto a população local e com o suporte de Lix, a líder do grupo rebelde, também conhecida como “Professor” (Norma Bengell, nome de peso no elenco), parte em busca de provas de que a população humana já habitou o solo acima deles.

Atmosfera radiativa: perfeito uso de locações e de figurinos
Com um roteiro bem amarrado, Pires, em parceria com diversos familiares que atuam no filme, conseguiu construir uma história eficiente, repleta de boas ambientações e atuações convincentes. No seu texto, uma clara inserção do aspecto socialista, ao utilizar nos seus personagens tratamentos como “companheiro”. Claro reflexo da época, na qual a ascensão política da classe operária começava a surgir e o período militar do Brasil iniciava seu declínio. Em certo momento do longa, ouvimos: “Todos precisam saber o que está acontecendo e tentar anular o domínio cibernético nuclear que envolve a todos”. Pois é, Figueiredo. Sua hora estava chegando.

Em seus figurinos brancos, uma unicidade da população futurista denota justamente a visão exata de Pires quanto ao simbolismo daquela ideia. Tornando todos iguais em aparência, um disfarçado, porém eficiente controle do pensamento se faz presente em uma das sutis mensagens do filme no seu aspecto pós-apocalíptico. No entanto, um claro sinal do período em que a obra foi executada se faz presente nos cabelos grandes e desgrenhados dos homens, muito comum no final dos anos 1970, bem como as camisas de peito aberto que vemos em alguns personagens, algo que destoa um pouco do aspecto clean que a obra propôs, mas, claro, sem prejudicá-la.

Trama bem construída: clima de conspiração dentro do abrigo nuclear
Na utilização das areias da praia de Jauá como locação externa, nada fica a dever a, por exemplo, o uso do deserto da Tunísia por George Lucas quatro anos antes, no primeiro Guerra nas Estrelas. E o que dizer do carro futurista que é utilizado como veículo do personagem de Pires em suas saídas na superfície? Do mesmo modo, o uso dos cenários feitos de modo artesanal, mas não menos eficientes, criam uma ambientação perfeitamente adequada a sua proposta.

Em 2015, o documentário Bahia Sci Fi, dirigido pelo filho de Roberto, Petrus Pires, trouxe diversas curiosidades acerca da produção lançada 35 anos atrás, como, por exemplo, as técnicas de filmagem no galpão que servia como abrigo e que o fazia parecer bem maior.

Um verdadeiro tesouro do cinema baiano.


A Bruxa

(The VVitch, A New-England Folktale EUA, 2015) Direção: Robert Eggers. Com Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Scrimshaw.



Por João Paulo Barreto

Há um mal na floresta.” Com essa frase, William, o pai da família de imigrantes europeus que vive na Nova Inglaterra do ano de 1630, define de modo simples toda a premissa de A Bruxa. E do mesmo modo simples, o filme consegue construir uma atmosfera de puro pavor, sem qualquer necessidade de sustos fáceis ou manipulação do público através de artifícios já clichês e comuns ao gênero do terror.

Expulsos do vilarejo onde vivem após serem julgados em um tribunal puritano e religioso (por razões que a obra não evidencia), o patriarca e sua família passam a viver às margens de uma floresta onde tentam levar uma vida comum de fazendeiros e criadores de cabras. Até que o bebê Samuel desaparece nas mesmas margens, o que leva o grupo de pessoas ao colapso emocional na busca pela criança, que todos acreditam ter sido raptada por uma bruxa que vive na mata.

O patriarca William: vítima da própria fé cega
Trata-se de uma obra de sugestão, cujo principal mérito está no poder de causar o medo no espectador a partir unicamente do modo como cria sua atmosfera na utilização de lendas do folclore local da Nova Inglaterra de quatrocentos anos atrás. Tecnicamente perfeito em sua recriação de época, desde o seu figurino camponês até a utilização de um idioma inglês arcaico na composição das falas, o longa coloca a audiência dentro daquele universo, compartilhando conosco a dor daquela família vitima de dogmas religiosos infundados e que vê a sua fé cega como único caminho a seguir.

Fé que se torna, de modo irracional, o último bastião a que pode se prender os membros daquele clã diante de elementos que eles não conseguem entender. Entre rezas proferidas de modo incessante e desesperado, e a dolorosa dor da perda a sufocar pais desolados, a loucura acaba sendo o único meio de se encontrar conforto. Quando se abraça a insanidade, ao menos uma parte do mal que aquelas pessoas se vêem diante passa a fazer sentido. Em seu final brutal, é justamente a essa conclusão que a brilhante obra escrita e dirigida por Robert Eggers nos leva.

O pequeno Caleb e sua redenção diante da própria dor física
E quando vemos certo elemento do filme proferir suas palavras de mau agouro, já é tarde demais para qualquer tipo de fuga. E nós acabamos por nos sentir do mesmo modo desolado tais quais os personagens daquela insana história.

É desse tipo de intervenção junto ao espectador que o verdadeiro cinema trata. A sessão de A Bruxa naquela sala escura denota muito bem isso.


terça-feira, 12 de julho de 2016

Caça-Fantasmas

(Ghostbusters, EUA, 2016) Direção: Paul Feig. Com Melissa McCarthy, Kristen Wiig, Kate McKInnon, Leslie Jones, Chris Hemsworth.


Por João Paulo Barreto

Sentir-se nostálgico em certos momentos de Caça-Fantamas, versão século XXI das aventuras estreladas por Bill Murray, Dan Aykroyd, Harold Ramis e Ernie Hudson nos anos 1980, foi inevitável. As aparições surpresa dos quatro integrantes da equipe original, de fato, causou certos risos de saudade (sim, conseguiram arrumar uma sutil maneira de colocar o falecido Ramis entre as aparições do filme – e não como um fantasma, friso).

No entanto, deve-se tomar cuidado para não confundir tal sentimento com um atestado de qualidade do filme dirigido por Paul Feig. Aqui, muito do carisma de Peter Venkman, Raymond Stantz, Egon Spengler e Winston Zeddmore, os caçadores originais, não se encontra nas suas versões femininas.


As novas versões: pouco carisma
Claro, seria pedir demais que a ironia do Venkman de Bill Murray pudesse ser trazida à tona em alguma das fracas comediantes que compõem a nova equipe. Porém, apesar de errar ao tentar inserir uma versão “cientista tresloucada” na postura às vezes irritante de Kate McKinnon, que não funciona com seu mode “tô nem aí” e nos seus trejeitos oriundos do Saturday Night Live, ou na atrapalhada Erin Gilbert de Kristen Wiig, podemos encontrar pelo menos uma personagem realmente engraçada na presença de Leslie Jones que, oriunda do mesmo SNL, consegue se sair melhor com sua Patty Tolan.

Melissa McCarthy, parceira habitual dos projetos de Paul Feig, também traz bons momentos com sua Abby Yates, uma vez que, ao menos dessa vez, o diretor foge do esperado clichê e inova ao não usar sua presença física da atriz como meio de piada, como o fez em Missão Madrinha de Casamento e em A Espiã que Sabia de Menos, seus trabalhos anteriores com ela.


Chris Hemsworth claramente se divertindo no papel do bobão Kevin
Repleto de aparições e referências aos originais, como as falas do recepcionista bobalhão Kevin, vivido por um Chris Hemsworth claramente se divertindo muito no papel, lembrando a fala clássica de Dan Aykroyd ao perguntar “Escute, você ta sentindo esse cheiro?” ou quando Annie Potts, que viveu a recepcionista sem paciência do grupo, reaparece com a mesma intolerância e fala padrão (“O que você quer??”),  a nova versão ganha pontos ao investir justamente nesse saudosismo, mas se vê enfraquecida por não caminhar com as próprias pernas e não conseguir construir o mesmo carisma que a história original possuía.

Assim, resta a essa nova versão se basear no espetáculo visual para conseguir captar a atenção do espectador. E, neste aspecto, o filme se sai muito bem. Principalmente, claro, nas aparições fantasmagóricas, como a de um pássaro jurássico durante um show de metal (com uma hilária presença do Ozzy) ou em seu desfecho, quando Nova York, obviamente, é invadida por diversos fantasmas arruaceiros. 

Versão real do fantasma do logo: Efeitos visuais impressionam
Na presença de uma nova versão do monstro de marshmallow, dessa vez na forma de um balão inflável, mais uma eficiente referência às obras anteriores. Outro ponto é o ótimo trabalho na criação do fantasma do logotipo em sua incrivelmente real aparição. A sua “textura” de pano realmente impressiona o espectador.

Tais atributos visuais, uma pena, apenas ratificam a fragilidade do roteiro e a falta de carisma dos personagens desse novo Caça-Fantasmas, uma vez que, ao precisar nos lembrar tanto que houve dois filmes anteriores e que ambos foram bem eficientes no humor ácido de seus protagonistas, o novo longa acaba servindo apenas como, apesar dos ocasionais risos aqui e ali, uma fraca homenagem.

Mais sorte no próximo exemplar. 

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Janis: Little Girl Blue

(EUA, 2015) Direção: Amy Berg.


Por João Paulo Barreto

Mais do que uma colagem de vídeos de época, com imagens icônicas e trechos das marcantes performances de Janis Joplin, Janis – Little Girl Blue desenha um mapa através da fragilidade emocional, inseguranças e genialidade absurda da jovem cantora texana morta em outubro de 1970.

O filme da experiente documentarista Amy Berg opta por uma desconstrução do mito para, assim, demonstrar ao espectador o quão gigante era a chamada rainha do blues americano. Seguindo uma convencional, mas mão menos eficiente, estrutura cronológica, o longa opta por apresentar a infância e adolescência da artista, na pequena cidade de Port Arthur, Texas. Já neste ponto, o documentário acerta por abordar o impacto psicológico que o bullyng teve na vida da jovem.

Se desde criança ela demonstrava uma rebeldia natural ao ser expulsa de corais de igreja e aulas de canto por não querer se adequar ao modelo de boas maneiras imposto, toda essa inicial segurança e atitude desmoronam em situações traumáticas por conta de sua disfarçada necessidade de inclusão em um perfil social que, na raiz, ela nunca precisou. Cresce nesse modelo, mas, pouco a pouco, se vê influenciada pela cultura beatnik e pelo blues, percebendo, assim, que Port Arthur é muito pequena para seu pensamento de vanguarda.

Sorriso cativante: Janis nas ruas do Rio durante o carnaval de 1970
Então, ao ser humilhada na capa de um jornaleco estudantil na eleição do “homem mais feio da turma” (em um dos momentos mais tocantes do longa), Janis, apesar de destruída psicologicamente por tal crueldade, encontra nesse fato a fagulha que lhe tiraria da inércia de cidadezinha do interior, levando-a, no começo dos anos 1960, a São Francisco, cidade símbolo do pensamento livre nos Estados Unidos da época. E é neste ponto que sua ascensão e, contraditoriamente, ruína começam.

Na narração de cartas escritas para sua família (cartas que ganham na voz da cantora Cat Power uma poderosa interpretação), o filme exibe uma face ingênua, repleta de dúvida, algo que denota justamente o fato de que, apesar da impactante voz e comportamento à frente do seu tempo, Janis era apenas uma menina com vinte e poucos anos, longe de casa e cheia de insegurança, algo comum em qualquer pessoa que se vê em sua situação.

Ao exibir esse processo de amadurecimento e percepção de que o mundo pertencia a ela, o filme cria uma eficiente rima narrativa, uma vez que, apesar do alcance fugaz do sucesso e postura dominante no palco, a menina Janis Joplin ainda precisava da aprovação de sua família ao falar do quanto estava feliz por ter conhecido alguém em São Francisco e por finalmente se ver pertencendo a algum lugar.

Janis e o empresário Albert Grossman
Nesta construção da personalidade da cantora, Amy Berg opta por uma linha narrativa que equilibra o crescimento da artista como interprete com suas nuances de fragilidade. E essa abordagem acaba por, de modo genuíno e sem manipulações, partir o coração de quem testemunha aquela história, como quando vemos Janis lamentar-se pelo fato de que, após uma festa ou uma apresentação em um bar, ela era a única a ir para casa sozinha ou quando em uma de suas cartas ela admite que quer desesperadamente ser feliz.

Em outro ponto, percebemos ainda mais sua fragilidade quando é abordado o momento em que Janis, ainda na sua primeira tentativa de São Francisco, volta ao Texas (após vaquinha de amigos na passagem) para fugir do vicio em metanfetamina. No retorno, desenha em sua vida uma esperança de ter encontrado o amor e deposita nessa possibilidade todos os seus anseios. Rejeitada, decide voltar à Califórnia a convite do amigo Chet Helms, que viria a se tornar seu agente e responsável pela união à banda Big Brother and The Holding Company. O sucesso começava a surgir em sua vida e suas ansiedades se faziam mais presentes.

Na sua relação com as drogas, Janis era uma vitima de seus próprios impulsos. Sofria com a pressão de um mundo áspero e influências ao seu redor, o que tornava apenas temporária sua distância da heroína. Após alcançar fama no festival de Monterey, sua carreira realmente decola e o convite para seguir solo não tarda a aparecer. Sozinha, sem o suporte dos antigos parceiros de banda e percebendo-se inapta a liderar um grupo musical, se vê cada vez mais dependente química. A pressão da mídia não ajuda e as críticas negativas a derrubam ainda mais.

Janis de topless em Ipanema: bem à frente do seu tempo
Em sua estrutura temporal, a abordar os poucos anos de fama que a cantora teve, a montagem do documentário passa pelas breves fases da vida de Janis focando em suas turbulências, mas mesclando-as com as fases de calmaria. Uma delas surge a partir de uma pergunta do apresentador Dick Cavett, em seu talk show, quando o filme adentra no período que a cantora passou no Brasil, durante o carnaval do Rio em 1970, período em que seguiu de carona pela região norte e nordeste do país. Nas palavras de um namorado que conheceu em Ipanema, o sentimento mais pleno de que, com uma boa companhia constante, ela poderia não ter sucumbido.

Já sabemos o final daquela história e caminhar para ele após sermos apresentados àquela face tão delicada e díspar da sua postura decidida e auto-afirmativa no palco, torna a experiência de testemunhá-la ainda mais dolorosa. Sim, dolorosa, mas de forma crucial, obrigatória. 

sábado, 9 de julho de 2016

Paulina

(La Patota, 2015, Argentina) Direção: Santiago Mitre. Com Dolores Fonzi, Oscar Martínez, Cristian Salgueiro.


Por João Paulo Barreto

Paulina tem como seu principal equívoco o fato de abordar um tema polêmico como o estupro sob uma possível postura de proteção do agressor em detrimento da vitima. No entanto, na história da advogada bem sucedida que decide largar o futuro promissor como juíza para dar aulas a adolescentes pobres em um vilarejo argentino, uma discussão não muito comum no cinema é proposta pelos realizadores.

A personagem título possui um pensamento social atuante, que a faz seguir suas escolhas visando uma fuga da postura elitista que a classe na qual foi criada impõe como sendo o modo  de se viver. É uma cidadã preocupada com as pessoas que a cercam e que, por isso, tem na ideia de compartilhar seu conhecimento um modo de tentar mudar a realidade dos menos privilegiados que a elite argentina tenta não enxergar.

Tecnicamente, Paulina é uma obra que caminha muito bem em sua adaptação. Com uma montagem eficiente, que trabalha bem as elipses e os flashbacks, a narrativa flui de modo não linear, conseguindo, porém, manter sua trama e captando a atenção do espectador sem maiores problemas. Da mesma forma, acerta no tom de atuação de seus protagonistas, a começar por Dolores Fonzi, com seu olhar sempre determinado, levando-nos a questionar o óbvio, mesmo que os argumentos de sua personagem não se sustentem. Conta também com Oscar Martínez, que, na postura de um pai inicialmente pragmático, não tarda a ceder ao emocional diante da postura irrestrita da filha.

Postura social atuante: Paulina leciona na escola do vilarejo
Em uma intensa discussão inicial, Paulina conversa com Fernando, seu pai, acerca dos seus planos e ali, com poucos minutos de filme, numa cena realizada sem cortes e que, por isso, tem seu impacto ainda mais valorizado, passamos a conhecer bem sua determinação e ideais focados em objetivos já traçados e planejados. A seu pai, resta apenas a percepção de que não há qualquer argumento ou influência que sua posição possa exercer na mentalidade da filha.  

Após se familiarizar com o desleixo e irresponsabilidade típica da juventude de seus alunos , a agora professora Paulina mantém sua rotina nas tentativas de captar a atenção e lecionar algo para os jovens. Passando a fazer parte da rotina do vilarejo, cria laços de amizade e começa a levar no lugar uma vida de acordo com suas expectativas. Até que, voltando da casa de uma amiga, é atacada por um grupo de homens e estuprada por Ciro, morador local que trabalha em uma madeireira. 

Neste momento, o filme começa a abordar o viés incomum citado no inicio deste texto. Violentada e grávida, Paulina decide prosseguir com a gestação, preferindo não denunciar seus agressores, mesmo sabendo quem são. Em seus argumentos, nem sempre compreensíveis levando em consideração a gravidade do crime sofrido por ela, interromper tal gestação ou denunciar os agressores iria de encontro aos ideais que a levaram, inicialmente, a optar por aquele emprego e missão social no local.

Ciro e o grupo de criminosos
Após saber que seu pai, um juiz influente na região, solicitou a prisão dos envolvidos, Paulina mente ao dizer não reconhecê-los como agressores. Em seu argumento, por conta do estado físico dos presos, a confissão foi arrancada sob tortura, o que torna invalido qualquer argumento. Em um comportamento estóico e que gera incômodo no público, a personagem parece agir cegamente, de acordo com seus princípios que, ao que leva a crer, fazem sentido somente para ela, em uma atitude que beira a teimosia infantil, principalmente quando em uma discussão com Fernando, admite que cogitaria abortar se tivesse sido estuprada pelo próprio namorado.

Há um fator que gera certo desconforto na produção que é o fato de que a obra é toda ela realizada por homens e isso acaba colaborando na impressão de equivoco e inutilidade na proposta lançada em debate. Será que sob um olhar feminino por trás das câmeras, tal ideia de discussão seguiria em frente? E o que é mais importante de se perguntar: não seria um desserviço do cinema lançar uma proposta como essa em pauta?

Fernando e sua tentativa de dissuadir sua filha
Na alteração do título para sua versão brasileira, inclusive, subliminarmente um juízo de valor é retirado dos agressores, uma vez que, de La Patota (bando de vadios, em tradução livre) para Paulina, indiretamente o nome exime um julgamento dos atos do grupo de criminosos colocando-o sobre o comportamento da vitima.

Quando a sociedade cada vez mais necessita de incentivos para denunciar crimes contra a mulher, talvez a obra produzida por Walter Salles soe como uma discussão que, apesar de ousar e fugir do esperado clichê catártico de filmes de vingança, não contribui em nada para melhorar o cenário atual de violência sexual em que vivemos e que precisamos mudar.


quinta-feira, 7 de julho de 2016

Julieta

(Espanha, 2016) Direção: Pedro Almodóvar. Com Emma Suárez, Adriana Ugarte, Michelle Jenner, Rosy de Palma, Daniel Grao, Dario Grandinetti.


Por João Paulo Barreto

Em Julieta, Pedro Almodóvar retorna ao tema da perda dentro do universo feminino cujo conhecimento profundo o consagrou. Aqui, o cineasta destrincha a dor da personagem título, uma mãe cuja falta de informações acerca do desaparecimento voluntário de Antia, sua filha de dezoito anos, a atormenta.

É um filme que destrincha todo o impacto destrutivo, físico e emocional, que a ausência de um filho pode causar. Em seu roteiro, baseado no conto escrito por Alice Munro, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2013, o diretor espanhol traz para o espectador justamente isso, uma análise da perda e a forma impossível como uma pessoa consegue se recompor e seguir adiante de modo a deixar aquela ferida, apesar de aberta, incomodando o mínimo possível.

A Julieta do título é uma professora aposentada que, na inércia, parecia ao menos tocar a rotina doze anos após o desaparecimento da única filha. Ao reencontrar Beatriz, uma jovem que costumava ser amiga de Antia, saber que a mesma reencontrou a garota e que esta já tem três filhos e segue a vida distante e bem, os poucos vestígios de equilíbrio emocional que Julieta parecia ter caem por terra. O acontecimento traz todo um turbilhão de lembranças à tona, lhe obrigando a revisitar o passado, levando a mulher a enfrentar seus demônios escrevendo sua história em forma de carta à filha.

Na angústia da perda, Julieta busca alento na escrita 
Na construção de sua protagonista, Almodóvar opta por uma desconstrução física da mesma. Em sua juventude, vivida por Adriana Ugarte, com os cabelos loiros chamativos, típicos dos anos 1980, seguida de uma beleza mais sóbria e cativante em sua maternidade, um brilho no olhar e um resplandecer de sua aparência são notáveis. Após acontecimentos trágicos e marcantes, a figura de Julieta parece se despedaçar aos poucos. Na presença de Emma Suárez, que a vive em sua fase mais madura, uma melancolia no olhar, rosto sempre abatido, a insegurança nos planos e uma constante pressa no gestual, denotam seu estado de espírito por um fio. E a queda torna-se inevitável.

É justamente essa queda que o filme se propõe a analisar. Mas, claro, trata-se de Pedro Almodóvar. Não somente a atuação de seus personagens constrói seus arcos. Os elementos em seus cenários, suas cores, suas referências culturais ajudam nesta construção, criando para o espectador uma trilha para as personalidades dos habitantes daquele mundo. Lá estão as pistas de um universo típico. Um quadro do pintor Lucien Freud na parede, como um espelho a revelar a face pesada da solidão de Julieta; a leitura de um livro sobre a tragédia grega a entregar pistas do que virá a seguir, elementos que delineiam todas as nuances de um drama áspero.

O calor da juventude e a entrega sem medos ao amor 
As tão famosas cores de Almodóvar, claro, se fazem presentes. Cores inicialmente vibrantes que vão representando a perda de calor na vida de Julieta. De modo sóbrio, o diretor acerta ao não ceder ao melodrama escancarado, deixando a tristeza se fazer presente de forma genuína. E essa tristeza vai sendo representada de maneira sutil em seus cenários, com as cores quentes das paredes que, gradativamente, viram tons pastel, como a exibir a ausência de energia na vida de Julieta.  Isso é visto, também, nos bolos que ano a ano a mulher compra para celebrar o aniversário da filha. Bolos que vão se tornando mais discretos com o passar do tempo e que, de modo brilhantemente sagaz, Almodóvar registra no lixo em cada ocasião.

Trata-se de uma película feminina em sua essência, que observa as dores daquelas mulheres em suas mais variadas nuances. Na presença da mãe senil de Julieta, um contraste impressionante com a jovialidade e felicidade no rosto da nova namorada do seu pai, também feliz por poder recomeçar a vida, mas sem agir com egoísmo ao permitir-se cuidar da esposa doente com a ajuda de seu novo amor. No mundo de Almodóvar, conceitos de certo ou errado ganham variados significados. E os homens acabam por ser representados de modo alegórico, como vemos nas esculturas com genitais expostos (uma delas, inclusive, abrindo o filme), que uma das personagens define como “pesadas para que vento não possa derrubar, como as pessoas de lá”, referenciando o lugar onde vive às margens do oceano.

Elementos inconfundíveis no universo de Almodóvar
É uma obra repleta de rimas visuais. Em uma delas, vemos um mar calmo inicialmente convidar a protagonista, lhe dando boas vindas à casa do amor de sua vida. No dia que sua vida sofre o primeiro golpe, o oceano revolto parece querer expulsá-la, cumprindo sua função de tirar-lhe parte de sua existência. 

Na ausência de trilha sonora, inclusive, o diretor entrega um filme cujo silêncio colabora para o espectador compartilhar o vazio na vida de sua protagonista.

Nos créditos finais, com a pesada “Si no te vas” na interpretação de Chavela Vargas, um resumo daquela dolorosa angústia sentida por Julieta e uma mão que, carinhosamente, traz o espectador de volta ao mundo, conduzindo-o para fora do cinema.

Mas a vontade de ficar ali naquele universo parece maior. Poucos autores conseguem tal intento. Pedro Almodóvar é um deles.