sábado, 22 de outubro de 2016

O Contador

(The Accountant, EUA, 2016) Direção: Gavin O´Connor. Com Ben Affleck, Anna Kendrick, J.K. Simmons, Jon Bernthal.


Por João Paulo Barreto

Notoriamente visto como um ator limitado em suas performances dramáticas, Ben Affleck se revelou um dos melhores diretores de sua geração. Medo da Verdade, Atração Perigosa mostraram uma energia em seu modo de direção que alcançou com Argo, o vencedor do Oscar de melhor filme em 2013, uma maturidade primorosa na criação de thrillers.

No entanto, o galã ainda se arrisca a criar personagens baseados em seu modo soturno de atuação, como vimos no próprio Argo, sob a batuta de David Fincher em Garota Exemplar, e, contrariando muitas previsões pessimistas, acabou se revelando um excelente Batman na ultima encarnação do herói nos cinemas. Em O Contador, esse modo automático de atuar, sem muita necessidade de expressões dramáticas ou exigências nessa linha, se adéqua perfeitamente para seu personagem, aqui, dirigido por Gavin O´Connor, do ótimo Guerreiro.

Affleck vive Christian Wolff, um contador profissional que atua sob a fachada de um simples profissional do ramo, mas que, na verdade, gere os livros de caixa de diversos criminosos de alto escalão em vários países. Com uma infância traumática por conta de seu autismo e funções cognitivas fora do normal, é treinado por seu pai militar para usar sua inteligência em paralelo ao domínio físico. E é justamente nessa junção de opostos que o roteiro de Bill Dubuque acerta.

Escrever sobre o vidro: exigência para gênios
Há um equilíbrio visto na presença de Wolff em cena, o que é auxiliado bastante pelo modo frio de atuação de Affleck. O calculado modo de se movimentar, a rotina inabalável, o comportamento antissocial (algo visto em um engraçado momento quando ele rejeita encontrar-se com a filha de uma funcionária), as refeições exatas, o número preciso de talheres em casa, enfim, tudo mantém sua postura de acordo com seu transtorno obsessivo compulsivo e com os passos planejados que costuma dar para que seu disfarce não seja descoberto.

Ao ser contratado para descobrir as razões de um vazamento financeiro nos livros de uma grande indústria robótica, esse equilíbrio começa a desabar, algo perceptível pelo modo como se aproxima da também contadora Dana Cummings (Anna Kendrick) e tem sua barreira antissocial derrubada pela naturalidade da bela garota. Nesse ponto, com o TOC por não poder encerrar sua tarefa a torturá-lo, é curioso observar como O´Connor insere pequenas pistas daquele desequilíbrio, quando, por exemplo, a entrada de Christian com seu carro na garagem deixa de ser precisa com o tempo do portão eletrônico, ou, de forma mais escancarada, quando um ritual diário envolvendo música pesada, luzes piscantes e um bastão ganha contornos mais violentos.

A presença autoritária de J.K. Simmons
O filme acerta por se manter dentro de uma atmosfera de mistério na caça que o FBI, representado pela sempre eficiente presença autoritária de J.K. Simmons, realiza contra Wolff. Inserindo a figura de Jon Bernthal (cada vez mais a vontade em papéis violentos) como contraponto para o pragmatismo de Christian, há nesse embate uma química que funciona bem, principalmente nos momentos em que as armas de grosso calibre, auxiliadas por um desenho de som impactante (algo que remete ao clássico Fogo contra Fogo), trazem o choque da violência que o protagonista carrega consigo.

Encontrando o equilíbrio psicológico ao observar um original de Jackson Pollock fixado acima de sua cama, a pintura de linhas expressionistas representa bem o estado emocional e atormentado do contador. E, pelo menos aqui, há a justificativa da falta de espaço para colocá-lo escrevendo sobre o vidro, um já batido símbolo que o cinema usa para denotar genialidade.

Uma pena que a necessidade redentora e familiar do roteiro tenha falado mais alto, precisando inserir um laço não muito eficiente na história de vida do protagonista como forma a tornar mais maleável seu final escapista.

Ainda assim, um filme eficiente em seu tom hermético e de violência precisa. 

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

O Mestre dos Gênios

(Genius, EUA, 2016) Direção: Michael Grandage. Com Colin Firth, Jude Law, Nicole Kidman, Laura Linney, Dominic West.


Por João Paulo Barreto

Dentro de uma reconstrução histórica impecável, Mestre dos Gênios, filme de estreia do diretor Michael Grandage surpreende pelo modo intimista como o cineasta conseguiu, já em seu primeiro trabalho atrás das câmeras, uma ótima unicidade entre os seus protagonistas.

Na história, baseada em fatos reais, o jovem e promissor romancista Thomas Wolfe busca, durante a depressão americana na Nova York de 1929, a publicação de seu primeiro livro, então conhecido como O Lost, mas que, após a influência do editor Max Perkins, se tornaria o sucesso Look Homeward, Angel.

Vivido com paixão por um inspirado Jude Law, Wolfe exala uma determinação que se mescla bastante com uma sutil insegurança por conta da dúvida de seu trabalho ser realmente bom. Após recusas em diversas editoras, tem a proposta de publicação feita pela editora Charles Scibner´s Sons, na qual o lendário Max Perkins trabalha como principal editor. Aqui, temos um Colin Firth, sempre contido e oposto ao espalhafatoso (no bom sentido) Law, a entregar uma atuação que inicialmente reflete sua postura pragmática em relação aos cortes que sugere em romances em estado bruto, mas que, gradativamente, revela suas fraquezas e inseguranças comuns a qualquer ser humano.

Wolfe e Perkins: amizade que supera o estritamente profissional
O filme acerta ao apresentar Perkins em seu ambiente natural, seu escritório na editora, no qual vemos as obras de Hemingway, F. Scott Fitzgerald, dentre outras que ele editou. Ao receber os originais de Wolfe, um calhamaço gigante de páginas, faz uma pergunta: “diga-me que isso é por conta do espaçamento entre as linhas”. No entanto, o desanimo se transforma em intensa curiosidade, quando começa a ler já no trem para casa os originais, só parando de fato ao chegar à última linha.

De modo eficiente e econômico, Grandage opta por descrever a condição familiar de Perkins em uma única sequência, quando o vemos chegar em casa e ser recebido por suas quatro filhas e esposa. Não encontrando um cômodo sequer que esteja desocupado para focar na leitura dos originais, ele precisa se refugiar dentro de um closet a fim de conseguir se concentrar. Nisso, percebe-se um interesse de todas por arte, literatura e teatro, sem a necessidade prolixa de apresentar cada personagem individualmente e, o mais importante, sem tirar o espectador do foco para com seu protagonista e a forma como a dedicação irrestrita ao trabalho nem mesmo o lembra de tirar o chapéu ao chegar.  

Wolfe e Aline Bernstein: relação conturbada
O roteiro de John Logan, experiente nome por trás de diversos sucessos, constrói a relação entre Max e Thomas de forma a exibir um sentimento paternal do primeiro, algo intrínseco, uma vez que vemos o editor como pai de quatro filhas e seu desejo por um filho ser expressado pela esposa vivida por Laura Linney. Não à toa, vemos Max arrumar um sofá cama para Thomas ao recebê-lo em sua casa ou tranquilizá-lo acerca de qualquer má impressão que tenha passado durante o jantar. Max quer que Thomas se sinta como parte daquela família, ao menos na relação paternal que nutre pelo jovem gênio.

No desenvolvimento daquela amizade, o sucesso recompensa o esforço de escrita de Thomas, que, após o êxito de 1929 com Look Homeward, Angel passa os próximos anos contendo sua verborragia na escrita ao conseguir condensar, com a ajuda de Max, Of Time and The River, seu segundo best seller, lançado em 1935, e From Death to Morning, do mesmo ano.

Pearce no papel de F. Scott Fitzgerald ilustra os problemas com a esposa Zelda
Em uma inundação criativa, Thomas chega a escrever cinco mil palavras por dia, algo contrastado pelo bloqueio criativo de Fitzgerald, também agenciado por Max, mas que, desde o icônico O Grande Gatsby, não consegue escrever mais do que quinhentas palavras em um bom dia de trabalho. Vivido por Guy Pearce, o autor de Este lado do Paraíso é trazido à trama de modo a contrastar a facilidade com que Wolfe parece canalizar sua criatividade para o lápis e o papel, algo muito bem ilustrado pela direção de arte, que opta por exibir o minúsculo apartamento de Wolfe tomado por folhas e mais folhas de papel contendo seus escritos.

Em outro ponto, vemos Ernest Hemingway, vivido com um carisma caricato por Dominic West, em uma cena na qual todas as marcas ligadas a pessoa do escritor são apresentadas em tela, algo que não deixa de gerar certa graça, divertindo o espectador. Falhando apenas no desenvolvimento da personagem de Nicole Kidman, que vive a amante de Wolfe, Aline Bernstein, cuja dependência afetiva para com o escritor parece não encontrar muita lógica, uma vez que seu ciúme da relação dele com o editor contrasta diretamente com os planos que o casal fez para que Thomas alcançasse o sucesso literário (algo que, claro, não carece de muita lógica em um relacionamento amoroso como aquele), o roteirista John Logan consegue, no entanto, fechar bem o caráter histórico de seu roteiro.


Dominic West em breve participação como Ernest Hemingway
Em um final arrebatador e, mais uma vez, econômico em seu modo definitivo e sem apelações dramáticas excessivas, Grandage encerra a biografia de forma eficiente, não deixando de inserir um símbolo de desconstrução física do personagem de Max que, finalmente, cedeu ao seu emocional, deixando de lado qualquer vestígio do pragmatismo que guiou sua carreira, algo que mantinha seu trabalho sempre presente em sua vida.