quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Doutor Estranho

(Doctor Strange, EUA, 2016) Direção: Scott Derrickson. Com Benedict Cumberbatch, Chiwetel Ejiofor, Rachel McAdams, Mads Mikkelsen, Tilda Swinton.


Por João Paulo Barreto

Os estúdios Marvel entram, com Doutor Estranho, em uma previamente anunciada nova fase de suas adaptações cinematográficas oriundas do fértil terreno de histórias de quadrinhos pavimentado por Stan Lee, Steve Ditko e outras mentes geniais que criaram um palpável universo de personagens e arcos dramáticos fascinantes.

Aliás, muito da marca vista em todos os longas anteriores do estúdio são reforçadas neste novo exemplar da sua filmografia. O que, claro, não representa propriamente um problema. No entanto, após tanto aprendizado, já teria sido a hora de demonstrarem conhecimento com os próprios erros anteriores no quesito da entrega de personagens de acordo com a antecipação criada.

Não que haja algum problema com a encarnação de Stephen Strange, o brilhante cirurgião na pele de Benedict Cumberbatch, que parece ter nascido para o papel. O problema está na criação de um antagonista à altura de seu herói. Não se trata de Mads Mikkelsen, aqui bastante eficiente no papel de Kaecilius, um dos mestres que previamente foi discípulo da Grande Anciã vivida, também de modo bem convincente, por Tilda Swinton, mas que aderiu ao poder da Dimensão Sombria (erroneamente traduzida no Brasil como Dimensão Negra). Kaecilius deseja invocar o poderoso Dormammu, entidade que domina a tal dimensão, na qual o tempo não existe. E é aqui que o filme decepciona um pouco.

Mads Mikkelsen como o soturno Kaecilius: boa presença
Nesse ínterim, o arrogante, porém indefectível cirurgião Doutor Strange, sofre um grave acidente de carro que o deixa impedido de usar as próprias mãos. Na busca por uma cura, acaba chegando ao templo de Kamar-Tal, em Katmandu, no Nepal, onde, após uma traumática e violenta iniciação forçada pela sua prepotência, convence a Grande Anciã a treiná-lo nas forças ocultas da magia.

Repleto de efeitos especiais que remetem ao longa de Christopher Nolan,  A Origem, (do mesmo modo como suas cenas de luta em cenários giratórios), Doutor Estranho consegue não depender tanto de suas intervenções visuais em CGI e cria um bom desenvolvimento dos laços entre seus personagens, como ao inserir uma relação romântica entre Strange e a sua colega Christine Palmer (McAdams), ou quando utiliza um belo momento de reflexão acerca da relatividade do tempo na cena em que um dos personagens tem uma  morte traumática.

A Grande Anciã mostra onde a arrogância de Strange deve permanecer
Além disso, na inserção do humor, seu roteiro mantém um bom ritmo em piadas que não chegam a se tornar uma marca irônica constante do protagonista, como no Tony Stark de Downey Jr., mas que cria uma boa química entre os personagens (vide o momento em que o nome de Adele e de outros famosos sem sobrenome são citados).

Ao utilizar as supostas dimensões terrenas como gags visuais eficientes, o filme acerta bastante no seu tom entre a ação, o drama e a comédia, usando um mesmo artifício em três saídas diferentes: na já citada postura de um dos personagens diante da morte; nas cenas e luta entre o Strange e um dos aliados de Kaecilius e, no melhor uso do artifício, quando o protagonista conversa com a Dra. Palmer enquanto esta tenta salvar sua vida diante do seu corpo desacordado.

Dra. Palmer (McAdams) conforta Strange após acidente
Em seu final, a percepção de um saldo positivo do filme é inconteste, muito devido ao carisma de Cumberbatch, que, como a comparação anterior já disse, traz um contra peso eficiente ao que já nos habituamos a ver na presença irônica de Robert Downey Jr.

Uma pena que a entrega do tal vilão que ouvimos falar durante todo o filme seja tão decepcionante tanto em sua presença física, quanto no modo pretensamente criativo de se criar um final pegadinha para o espectador e para o próprio vilão, que parece tão surpreso (no lado negativo da palavra) com aquela proposta quanto nós sentados na poltrona do cinema. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Luz Entre Oceanos

(The Light Between Ocenans, UK-EUA, 2016) Direção: Derek Cianfrance. Michael Fassbender, Alicia Vinkander, Rachel Weisz.


Por João Paulo Barreto

Com A Luz Entre Oceanos, o diretor Derek Cianfrance fecha uma espécie de trilogia acerca do definhar e da adaptação que relacionamentos, sejam familiares ou amorosos, criam em seus desenlaces.

Em My Blue Valentine, esse definhar era particular, intimo a duas pessoas, exibindo uma ferida cuja dor de uma relação desgastada insistia em continuar inflamada e as forças para manter qualquer cura ainda possível era apenas unilateral; em  O Lugar Onde Tudo Termina, o cineasta ampliou essa análise comportamental, trazendo a um leque maior de personagens o preço das consequências de ações perpetradas tanto por eles quanto por outros pertencentes aos mesmos laços.

Aqui, em A Luz Entre Oceanos, ao adaptar um bestseller, Cianfrance opta por uma história já previamente escrita, mas que tem em seus desenlaces e consequências uma mescla do que já foi previamente experimentado pelo roteirista e diretor, que, a exemplo do longa anterior, insere a condição da paz de consciência como algo intrínseco e obrigatório para alguns de seus personagens-chave.

Na história, o veterano da Primeira Guerra, Tom Sherbourne (Fassbender), assume o trabalho de faroleiro na costa australiana. Ideal para curar seus traumas de guerra e alimentar sua postura introvertida, a solitária função de manter o distante farol em funcionamento é cumprida com esmero. Tom, no entanto, se apaixona pela filha de um dos moradores da região, e esse sentimento por Isabel (Vincander) o leva a ceder aos impulsos de iniciar um relacionamento que terminará no casamento de ambos e na mudança de Isabel para a ilhota onde fica o farol sob a responsabilidade de Tom.

Tom e Isabel: o equilíbrio alcançado através de uma paixão
Neste ponto, percebemos o modo como Cianfrance retorna ao tema relacionado com o amor encarado como um meio de cura para traumas e a forma como uma vida pode ser colocada novamente nos eixos e no equilíbrio através do companheirismo enxergado naquela paixão. Isabel, porém, sofre dois abortos espontâneos e o choque da perda transforma a esperança daquela relação em dor e desilusão, modificada apenas com a chegada de um bebê naufrago cujo bote salva vidas, no qual um cadáver acompanha a criança, é levado à ilha pela maré.

Irredutível na ideia de fazer o que julga correto, Tom opta por avisar as autoridades acerca do fato, mas é convencido pela esposa a manter o fato em segredo e comunicar aos familiares que aquela criança é, na verdade, a filha que ambos tiveram na ilha. Trata-se da opção mais correta diante da possibilidade de ver o bebê entregue à aspereza de orfanatos. Ao descobrir, quatro anos depois, que a criança é, na verdade, filha de uma viúva (Weisz) cujo marido alemão, hostilizado por locais devido a sua nacionalidade, fugiu com o bebê para o oceano em um ato irresponsável de impulsividade, Tom se vê atormentado pela culpa por fazer a mulher sofrer pela falta que a filha e o esposo fazem. Do mesmo modo, a decisão a qual se vê diante da necessidade de tomar também tornará aquela mesma dor presente em sua própria esposa.

Rachel Weisz e o luto doloroso da perda de sua família
É quando o filme realmente diz a que veio, trazendo uma análise elaborada da culpa e da busca pela paz de espírito que o Tom anseia possuir novamente. Diante de tamanho horror presenciado pelo homem durante o conflito na França anos antes; diante da culpa que sente por se perceber como o único sobrevivente de todo um pelotão, a paz ansiada por ele no isolamento de seu trabalho e na nova e esperançosa vida que construiu ao lado de Isabel, se perde. Pelo fato de se considerar culpado por conta da perpetuação do sofrimento de mais uma pessoa, dessa vez não um inimigo de guerra, Tom tem em seu conflito interno e na sua relação idiossincrática com a ética uma batalha perdida.

Na opção escolhida pelo homem, as consequências de seus atos não serão deixadas incólumes e o preço a pagar não será taxado apenas a ele. A recompensa, no entanto, como prova o passar dos anos e a forma como o tempo termina por agraciá-lo, o faz perceber ter optado pela escolha certa.

Felicidade familiar balançada pela dor na consciência
Trata-se de uma obra que, ao se basear em uma estrutura romântica, usa (beirando a demasia) de artifícios de narração em off através de cartas, e que possui na atuação de seu trio de protagonistas uma carga dramática pesada, porém necessária, para o teor doloroso de seu desenvolvimento.

No entanto, consegue êxito nesse desenvolvimento, criando com o espectador uma ligação de estima perante seus personagens, cuja busca por felicidade cativa justamente pelo fato de que a mesma não ultrapassa limites que podem ferir ao outro.