(EUA, 2017)
Direção: Rupert Sanders. Com Scarlett Johansson, Pilou Asbæk, Takeshi Kitano,
Juliette Binoche, Michael Pitt.
Por João
Paulo Barreto
O desafio aqui é falar de Ghost in the Shell, versão
live action, sem cair na armadilha raivosa de criticar a escolha do elenco
norte americano para viver personagens que, na animação, são orientais. Cinema
é indústria. Indústria custa caro. Estampar a cara da Scarlett Johansson no
pôster atrai investidores e público. E, no final, o interesse principal dos
produtores é esse. Então, se não quiser assistir à versão live action, a
excelente animação sempre servirá de consolo.
Dito isso, passemos a análise da obra propriamente dita. Como
entretenimento, Ghost in the Shell funciona
bastante. Trata-se de uma produção caprichada, repleta de boas sequências de ação,
uma direção de arte que se destaca pelo modo como cria um futuro que, em parte,
se vê de acordo com o esperado para a humanidade, no qual superpopulações se
espremem em grandes metrópoles e a publicidade parece invadir o dia a dia das
pessoas de forma incisiva. A cidade do filme, inclusive, mescla uma espécie de
Nova Iorque futurista, com a Los Angeles de Blade Runner (em todas as suas
óbvias referências) com a Tóquio original da animação.
Neste futuro, crimes são previstos com antecedência, algo
que remete à obra de Phillip K. Dick, seres humanos podem ser aprimorados com
tecnologia cibernética e ciborgues coexistem com pessoas. Major (vivida por
Johansson) é uma agente da organização Section 9, que persegue um suposto
terrorista virtual com a capacidade de hackear mentes que possuem melhorias
cibernéticas.
Major em momento de reconstrução
É curioso observar como o filme trabalha a questão da
solidão e dos questionamentos tão comuns à humanidade, mas a partir da óptica
de um robô, ou, no caso, de um ciborgue, uma vez que Major possui apenas o
cérebro humano. Neste sentido, o filme busca trazer certa profundidade à sua
protagonista, colocando-a em uma busca que, diferente da que vemos na animação,
até que enriquece a personagem, apesar de torná-la um tanto deslocada dentro da
trama central, que na animação trata exclusivamente da caça ao terrorista
Puppet Master, um ser virtual que consegue, como um vírus de computador,
penetrar no sistema da organização a fim de destruí-la.
No longa, claro, há algumas mudanças referentes às
motivações da protagonista, que ganha toda uma trama relacionada à busca de
suas origens. Compreensível, uma vez que se trata do maior destaque do filme.
Porém, é decepcionante perceber que os roteiristas Jamie Moss e William Wheeler
cederam à armadilha de colocá-la em uma relação direta com o personagem do
Puppet Master que, aqui, de modo deslocado, ganha uma face humanóide na figura
de Michael Pitt. Ao ceder à tentação reducionista de usar um vilão convencional
(e clichê), ao invés de se ater à animação original, a versão em live action
perde força.
Puppet Master ganha a face de Michael Pitt
Do mesmo modo, a inserção de uma personagem que representa
alguém diretamente oriundo do passado da Major não colabora tanto para o seu
desenvolvimento. Entretanto, apesar disso, a justificativa para a diferença
étnica e o uso de um nome oriental para a personagem de Johansson (Motoko
Kusanagi) é bem justificada dentro da trama, uma vez que o invólucro (ou Shell, como queira) da Major pode até
ser anglo-saxão, mas seu cérebo continua bem japonês, como confirma o nome (ok,
haters, não deu para resistir a esse comentário).
Com cenas de luta e invasões com tiros que remetem a Matrix, algo divertido de se observar
uma vez que o longa de 1999 já usava assumidamente toda e qualquer referência à
animação lançada quatro anos antes, Ghost
in the Shell peca por um falta de criatividade neste sentido, usando
momentos clichê como personagens subindo em paredes ou atravessando vidraças
com os cacos causando aquele já conhecido efeito visual. Ao menos, uma
referência direta ao visual gore da animação é feita quando a personagem precisa
destruir um dos seus membros. Mas as explosões faciais tão hipnotizantes no desenho
fizeram falta. Compreensível, uma vez que na versão americana, a classificação
indicativa (e consequentemente o faturamento) impediria.
Sequências já vistas em outros filmes, mas que ainda funcionam
Há, no entanto, momentos marcantes, como a participação de
Takeshi Kitano como o fodão Aramaki, que no melhor estilo “I´m too old for this
shit”, entrega, para regozijo dos fãs, uma ótima sequência de vingança. Ou ainda as assustadoras inserções das gueixas cibernéticas logo em sua abertura.E como
é curiosamente bom ver Juliette Binoche em papeis tão pop!
Deixe de lado o mau humor. Desapegue e dê uma chance. Depois reveja o desenho
duas ou três vezes para compensar.
(UK, 2016) Direção: Danny Boyle. Com Ewan McGregor, Ewen Bremner, Robert
Carlyle, Jonny Lee Miller.
Por João
Paulo Barreto
Vinte anos é bastante tempo. Eu ainda estava no curso
ginasial há vinte anos. Curioso olhar para trás e perceber suas mancadas e seus
acertos. Seus arrependimentos, seus sucessos e seus lamentos.
Reencontrar-se
com seu passado, não somente com uma fase específica, mas todo um apanhado do
que você fez durante esse tempo até o dia de hoje, pode ser um exercício ao
mesmo tempo satisfatório e perigoso. Nostalgia vicia. Vicia quase (eu disse
quase) da mesma forma que a heroína que vinte anos atrás dominava a vida de
Renton (McGregor). Vicia quase da mesma forma que a mesma droga dominou a vida de
Spud (Bremner) pelas últimas duas décadas. Vicia do mesmo modo que a violência e
agressões físicas tornam a trajetória de Franco Begbie (Carlyle) mais aceitável
em sua própria vida. E vicia tanto quanto o rancor que mantém Simon “Sick Boy”
(Miller) vivo e, claro, mais dependente das carreiras de cocaína. Mas essa
mesma nostalgia te ensina a refletir e a reparar antigos erros.
T2 Trainspotting possui
uma cena na qual Sick Boy censura Renton por querer reviver fatos do passado
daqueles quarentões, quando todos ainda estavam com vinte e poucos anos. “Isso
é nostalgia. Você é um turista em sua própria juventude. Nós éramos jovens.
Coisas ruins aconteceram”. E mesmo com toda sua roupagem pop, trilha sonora
envolvente, cortes secos e rápidos característicos do estilo de Danny Boyle
desde o primeiro filme de 1996, essa continuação não escapa de uma roupagem
triste, de pessoas em busca de uma redenção e do próprio perdão pelos erros do
passado. Pessoas que exibem agora as marcas da idade (e das frustrações e
insanidades) em seus rostos. Na mesma cena, Simon censura Renton, fazendo-o
lembrar que foi ele quem vendera a primeira dose de heroína ao falecido Tommy.
Renton revida e atinge o amigo em cheio ao devolver a lembrança de que, agora,
o bebê morto de Simon seria uma moça cheia de vida e planos para o futuro. T2 Trainspotting, ao final, se resume a
isso. Golpes certeiros na consciência de cada um. Por debaixo da graça inerente
ao longa, há um sabor amargo e uma camada de tristeza por debaixo do seu tom de
comédia.
Down to the memory lane: Simon, Renton e Spud honram Tommy
Para o espectador, porém, é um reencontro com os personagens
marcantes. A ideia de mostrar cada um deles em suas vidas atuais e compará-las
com as pregressas causa graça, principalmente quando o foco está no ingênuo
Spud, que, desde o inicio, já se mostra como a melhor coisa do filme, como
quando explica a razão para seus fracassos está no fato de estar sempre uma
hora atrasado para seus compromissos da vida pós-heroína. “Como eu poderia
saber que existia algo como o horário de verão se eu fui um junkie pelos últimos
vinte anos?” Pergunta relevante...
Trata-se de um filme que funcionaria bem sozinho, mas a
opção de Danny Boyle em inserir constantes referências ao original, no começo,
funciona. Porém, no decorrer das duas horas de projeção, acaba por cansar um
pouco. Mas não ao ponto de enfraquecer demais o longa. No entanto, isso acaba
por torná-lo dependente demais de seu predecessor. Mas entendemos que a pretensão de Boyle é a de fechar um ciclo. E, por isso, qualquer intenção
forçada em referenciar a obra de 1996 acaba sendo relevada em nome da ótima
atmosfera captada pela continuação. E
isso ele consegue sem necessariamente querer causar a mesma revolução visual
que foi o longa noventista. Aqui, não houve nenhuma autocópia ou busca do
impacto sensorial que foi a cena do banheiro. Aliás, é delicioso pescar as
referências feitas durante a projeção, como quando Renton cai por cima de um
capô de carro e sorri para a câmera, ou quando Spud se vê diante da mesma rua
onde anos antes correra após um furto.
Begbie e sua fúria contra Renton
No aspecto visual, Boyle resgata os tons pastéis e os papeis
de parede em casas populares escocesas em uma bem sucedida autorreferência. E nesta mesma passagem, uma sombra familiar na parede parte o coração do espectador. O
momento em que Renton adentra em seu antigo quarto causa no espectador quase o
mesmo impacto que nele mesmo. E o medo do efeito que o disco de Iggy Pop com a
faixa Lust for Life causará nele é
bem compreensível. Apenas a batida inicial da faixa já é suficiente para deixá-lo
apreensivo. E o espectador parece também sentir o mesmo impacto e receio.
A percepção final é a de estarmos diante de três caras
atormentados (Begbie não conta. Continua o mesmo psicopata de sempre).
Atormentados e fracos, como podemos perceber pela recaída de Renton e Sick Boy
pela agulha na veia. Apesar de seu discurso atualizado do monologo Choose a Life, Renton, mesmo com 46
anos, ainda denota o mesmo grau de imaturidade de vinte anos atrás. Não há
muita redenção para aqueles indivíduos e é um alivio perceber que o filme não se
rende a esse artifício sentimental. Quando vemos Begbie pedir perdão ao filho e
se despedir de sua mulher, uma pretensa intenção piegas e inserida, mas, ainda
bem, logo cai por terra. Aquele personagem está aquém de qualquer salvação. Sua
dependência da violência já o dominara.
Contudo, é ótima a sensação ao percebemos ser Spud o mais
forte dos três, o mais fiel ao seu processo de desintoxicação. Como disse o
próprio Renton, Spud nunca machucou ninguém. É com regozijo que percebemos um
final feliz para o coitado.
(Split, 2016, EUA) Direção: M. Night Shyamalan.
Com James McAvoy, Anya Taylor Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson, Jessica
Sula.
Por João
Paulo Barreto
Com uma carreira repleta de altos e baixos (mais baixos do
que altos, é bem verdade), M. Night Shyamalan acerta a mão em Fragmentado, trabalho no qual ele volta a
mirar nas questões psicológicas do ser humano e suas consequências para o mundo
à sua volta tal qual havia feito no subestimado A Visita, seu longa anterior.
Aqui, diferente da psicopatia cruel e displicente do casal
de idosos do filme de 2015, James McCavoy traz para seus vinte e quatro
personagens (mas somente seis evidenciados e desenvolvidos pelo filme) uma
mescla exata da citada crueldade, de frieza, doçura, inocência, pragmatismo,
aspereza e brutalidade, características inerentes a cada uma das pessoas que
habitam sua mente. Com uma atuação precisa, o jovem ator escocês parece flutuar
de uma performance para a outra, trazendo para o público uma marca reconhecível
para cada personalidade que habita o corpo do protagonista, seja ela a postura inflexível,
um olhar ou um modo infantil de se expressar. Em uma construção na qual as
nuances são imprescindíveis, McAvoy coloca cada uma delas em serviço da sua
excelência.
McAvoy e sua versão infantil
Na história, o atormentado homem sequestra três jovens e as
mantêm como reféns em um ambiente subterrâneo. O pretexto é o de que elas servirão
como alimento para uma criatura que ainda surgirá, algo que logo percebemos se
tratar de uma nova personalidade do sequestrador. Em seu roteiro, Shyamalan
cria uma atmosfera incomoda de tensão justamente pela ideia de que o foco dessa
vez possui raízes no universo real, sem qualquer tipo de escape relacionado com
algo sobrenatural ou imaterial. O perigo aqui é calcado no plausível. E o
incomodo principal do espectador está diante justamente desse fato.
Na figura da personagem de Anya Taylor-Joy, que já havia se
destacado no thriller A Bruxa,
Shyamalan aproveita para explorar uma de suas marcas como roteirista que é a
perda da inocência infantil, além de voltar a aplicar outra marca que é a da
câmera subjetiva a partir do olhar de uma criança. No caso, Casey Cooke,
personagem vivida por Joy na adolescência, possui um passado de abusos, no qual
foi molestada pelo seu tio (a forma como o diretor opta por evidenciar choca
pelo modo ao mesmo tempo sutil e monstruoso como tal fato é mostrado). Neste
arco, a riqueza de interpretações que o roteiro oferece denota bem a
profundidade da escrita do diretor. Em uma história na qual um personagem
monstruoso esconde sua verdadeira face no intuito de conquistar a confiança de
uma criança, o que dizer de um personagem que possui várias personalidades, mas
todas elas são fieis ao próprio conceito de autenticidade, sem dissimulações ou
truques? Ele é o que é. Curioso exercício o de imaginar quem é o verdadeiro
monstro aqui.
Casey em seu primeiro momento de desespero
Mas o que impressiona de fato no filme ainda é a atuação de
McAvoy. Seja em uma sutil homenagem de Shyamalan ao seu principal ídolo, Alfred
Hichcock, com tomadas que referenciam Norman Bates e Psicose (principalmente quando uma personalidade feminina do
protagonista é inserida em rápidos vislumbres para depois se revelar), ou quando
a tal última e definitiva pessoa na mente dele é trazida à vida e sua característica
animalesca é evidenciada de modo ao mesmo tempo fascinante e asqueroso.
O ator durante visita a São Paulo na divulgação de Os Cowboys
Finnegan Oldfield esteve no Brasil em 2016, ocasião em que
divulgou Os Cowboys durante o
Festival Varilux de Cinema Francês, no Rio de Janeiro e São Paulo. Filme atual
em relação à situação do Estado Islâmico e a adesão de jovens europeus à doutrina
de terror preconizada pela organização, Os
Cowboys, apesar de ter sua história centrada no final dos anos 1990 e
início dos anos 2000, traz uma reflexão precisa para o que acontece no velho
continente (principalmente na França) nos últimos anos.
Sobre esses aspectos da obra e outros assuntos, Finnegan Oldfield
conversou com o blog Película Virtual.
OS COWBOYS ME REMETEU EM DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS AO CLÁSSICO DE
JOHN FORD, RASTROS DE ÓDIO.
Sim, há diversas semelhantes. Mesmo não sendo uma refilmagem
e eu não tendo utilizado o Rastros de
Ódio em minha pesquisa, Thomas (Bidegan, diretor) me mostrou outros filmes
na construção de Os Cowboys, como Cidade das Ilusões (Fat City), de John Huston, que não chega a ser um western, mas é
uma obra que aborda a transmissão de uma pessoa para outra. É disso que fala o
filme, mas utilizando todo esse viés e os códigos todos dos filmes de faroeste.
Foi exatamente isso que ele quis fazer. Utilizando essa referência nos filmes
de faroeste, como o uso dos planos abertos de montanhas e paisagens, por
exemplo. Como no momento em que ele está fumando um cachimbo da paz junto aos
talibans, em outra cena vemos pessoas a emboscá-los de cima de um prédio como
se fossem índios nos desfiladeiros. A partir de um certo momento, o filme passa
a ser um faroeste, principalmente quando já o vemos com seu revolver em punho e
na cintura.
SEU PERSONAGEM NO
FILME É BEM SOLITÁRIO. COMO SE DEU A SUA CONSTRUÇÃO?
Eu li muitas vezes o roteiro. Foram muitas conversas com o
Thomas (Bidegain) sobre a personagem e suas ideias de como ele queria que esse
adolescente se transformasse em um homem, em um cowboy. E isso foi muito
interessante para o trabalho de ator e foi um desafio que eu encontrei para
fazer esse papel.
A FRANÇA VEM PASSANDO
POR UM PERÍODO CONTURBADO EM RELAÇÃO À POLÍTICA E A GUERRA CONTRA O EXTREMISMO
DE ORIGEM RELIGIOSA. COMO FOI ABORDAR ESSE TEMA NO FILME?
Curiosamente, no caso de Os
Cowboys, o filme foi feito antes dos atentados ao Charlie Hebbo, antes dos
atentados de novembro de 2015. Isso o torna um filme ainda mais atual. Outros
diretores realizaram trabalhos com temas relacionados e acabaram pagando o
preço de não ver suas obras sendo lançadas por conta do contexto. Os Cowboys foi lançado na França em 15
de novembro de 2015, dois dias após os atentados. A dúvida que surgiu na época
foi na possibilidade de lançá-lo ou não. Decidimos levar adiante a data
justamente para não deixar que o terrorismo começasse a dar as ordens no
cinema. Eu concordo com o Thomas Bidegain (diretor de Os Cowboys) quando ele diz que é preferível assistir a uma obra
como essa do que aos noticiários que ficam mostrando sem parar esse assunto. É
preferível ver um filme como esse do que os canais de notícias que exibem sem
parar imagens dos atentados sem se aprofundar nos fatos. Concordo que a gente
tem que estar informado sobre o que acontece, mas os filmes possuem uma outra
maneira de contar a história.
EXATAMENTE.
INCLUSIVE, ACHO QUE O FILME TEVE UMA CORAGEM IMPRESSIONANTE DE ABORDAR UM TEMA
TÃO DELICADO QUANTO A PRESENÇA DE CÉLULAS TERRORISTAS NA FRANÇA. E ISSO
JUSTAMENTE NA ÉPOCA DOS ATAQUES EM PARIS.
Foi complicado. Podemos dizer que esses fatos acabaram nos
alcançando. A realidade alcançou a ficção do filme. Quando fomos filmar na
Índia, todos nos diziam para ter cuidado por conta de riscos de terroristas e,
enquanto nós estávamos lá filmando, os atentados ao Charlie Hebdo aconteceram.
Bem ali, no centro de Paris. E decidimos continuar filmando. E essa foi a mesma
atitude quando chegou a hora de lançar o longa
QUAL A SUA POSIÇÃO
COMO CIDADÃO FRANCÊS DIANTE DESTE MOMENTO? É POSSÍVEL UMA COMPARAÇÃO COM A
POSTURA DOS ESTADUNIDENSES APÓS O 11 DE SETEMBRO?
É uma difícil comparação por conta da diferença de escalas
dos acontecimentos em relação a França e aos EUA. A nossa vida passou a ser
pontuada por atentados. A gente lembra do 11 de setembro, dos atentados a Londres,
a Madrid, ao Charlie Hebdo. E, ao mesmo tempo, estamos distantes disso tudo. É
um pouco disso que o filme fala, também. No filme, quando o personagem vê na TV
as torres gêmeas em chamas, ele se sente como se recebesse um cartão postal da
irmã pedindo por ajuda. E a gente na consegue entender o que significa enquanto não vivemos isso na casa da gente.
O FILME ABORDA UMA
QUESTÃO DELICADA QUE É A SEDUÇÃO DO ESTADO ISLÂMICO PARA COM JOVENS ÁRABES E
EUROPEUS. GEROU CONTROVÉRSIAS NA OCASIÃO DO LANÇAMENTO E PRODUÇÃO. DO MESMO
MODO, ELE ABORDA PONTOS RELACIONADOS A PRECONCEITOS, RACISMO E XENOFOBIA. COMO
SE DEU ESSA ABORDAGEM DO ROTEIRO?
O filme, na verdade, apresenta uma questão da emancipação
dessa jovem. Talvez, se ele se passasse em outra época, como os anos 1980, ela
talvez tivesse seguido para outro lugar, como Londres, morar em um cubículo e
ficar se drogando. E a historia começa antes disso, em 1997, quando ainda não
era comum que os jovens se juntassem ao Estado Islâmico. No fundo, é uma
história sobre pessoas comuns que vão se sentir aspiradas por essa agitação e
confusão que acontece no mundo. Em relação ao racismo, é verdade que o pai é
bem aquela figura francesa que tem aquela postura xenofóbica e alguns
comentários racistas acerca de imigrantes. Na metáfora do filme, o pai acaba
considerando que essas pessoas sejam como os índios. Já o filho, não. Ele passa
a ver os estrangeiros de uma maneira muito mais aberta. E isso é o que fará
dele um cowboy, um herói. O Thomas queria fazer um filme sobre essa abertura de
espírito. Sobre a mistura de raças. Sobre como é possível aprender as lições
dos seus ancestrais e de como o conhecimento passa de uma geração para outra.
EM SEUS FILMES ANTERIORES, HÁ UMA CONSTANTE ABORDAGEM DE CUNHO SEXUAL. COMO SE DEU ESSE PROCESSO DE ESCOLHAS DE PAPÉIS?
Não cheguei a ver muitos filmes franceses com temáticas sexuais e não há muitos que sigam essa vertente. Em relação às minhas escolhas, são temas interessantes. Por isso eu aceitei fazer esses filmes. Para Mineurs 27, o que me interessou foi como uma pessoa consegue crescer tendo sido vitima de abusos, como ela consegue superar isso. Bang Gang seguiu o mesmo questionamento de como os jovens vivem essa liberdade sexual e experiências nas quais eles podem erra e em seguida se corrigir e superar tudo isso. Principalmente a visão que as outras pessoas têm disso em tempos nos quais as redes sociais são tão ativas.
QUAIS SÃO OS SEUS
PRÓXIMOS PROJETOS?
Já estou com um novo filme pronto, dirigido por Bertrand
Bonello (diretor de Os Amores da Casa de
Tolerância e Saint Laurent). O
filme se chama Nocturama e aborda um
grupo de jovens de esquerda que colocam bombas em Paris. São jovens que não
percebem muito bem o que estão fazendo, inconsequentes que começam a perceber
que fizeram algo muito errado e começam a perceber a gravidade de seus atos. É
quando o filme começa a ser algo que se passa entre quatro paredes. Esse roteiro foi escrito antes de todos os
atentados e se chamava antes Paris é uma
Festa, mas precisou ter seu título modificado.
(Les Cowboys, França,
2015) Direção: Thomas Bidegain. Com
François Damiens, Finnegan Oldfield, John C. Reilly.
Por João Paulo Barreto
Os Cowboys, longa
de estreia do diretor Thomas Bidegain, roteirista por trás do doloroso Ferrugem e Osso, de 2012, traz em seu
título um curioso uso para a expressão que o batiza. Em uma clara alusão a Rastros de Ódio, a obra francesa
atualiza questões como xenofobia e racismo para um contexto do século XXI. No entanto,
aqui, substituem-se os comanches por muçulmanos extremistas e o sequestro
físico e forçado pelo intelectual e religioso. Ao invés de índios a observar de
cima das rochas do Monument Valley, extremista caminham em lajes enquanto
enquadram seu alvo. O resultado traz a
mesma dor de John Wayne ao precisar resgatar a sobrinha, só que representada
pelo pai vivido por François Damiens na busca pela filha, que deixa a França ao
ser doutrinada pelo namorado mulçumano e convencida a participar de ataques
terroristas.
Em sua construção, o filme apresenta diversos elementos que
aludem ao estilo que seu título sugere. Porém, tais elementos não se relacionam
à ambientação clássica que o espectador se acostumou a ver em westerns, mas se adéquam
a um terror insano, representado pela inércia de um pai que percebe ter perdido
a filha não somente de forma física, mas, bem antes disso, de forma sentimental,
quando ela abdica de qualquer contato com a família por conta da fé cega na
qual foi levada a acreditar. Junto ao filho George (Finnegan Oldfield), Alain
(Damiens) passa a dedicar sua vida ao resgate da filha, a quem começa procurar
através de pistas que vai seguindo através do contato com supostas células
terroristas. Aos poucos, a dureza áspera que existe nos dois cowboys do título
cede lugar ao desespero.
Derrocada física e psicológica: Alain, com o filho George, em busca de sua filha
A perda da filha mais velha se torna a derrocada de toda uma
família. A dor da ausência transforma a figura austera e durona de Alain em
pouco mais que uma sombra do que ele foi, algo que passa a influenciar, também,
seu filho George, que se vê ligado à busca da irmã da mesma forma obcecada que
o pai. Nesta rendição, o rapaz abre mão de sua juventude, passando a se dedicar
integralmente à localização da irmã, algo que, curiosamente, o leva, a partir
de acontecimentos trágicos, a construir sua própria vida, identidade e
personalidade.
Trata-se de um filme cuja maior
reflexão está na discussão acerca da xenofobia que ele oferece. Como em determinada
cena, quando uma mulher, em solo francês, é espancada somente pelo fato de usar
um hijab (espécie de xale) típico da mulher mulçumana. E quando, em um tempo no
qual um cidadão assumidamente xenofóbico ocupa o maior cargo do executivo estadunidense,
a reflexão oferecida por Os Cowboys ganha
ainda mais força.
George conta com uma inesperada ajuda na sua busca
Aqui, vemos um título que alude a
um gênero tipicamente americano referenciar uma obra na qual a reflexão vai
justamente contra a corrente de ódio e separação preconizada pela política
dominante atual. Não à toa, o único personagem americano do filme (vivido de
forma soturna por um excelente John C. Reilly) trata-se de um oportunista
mercenário que se infiltra na cultura mulçumana para facilitar seus interesses
escusos.
Nada mais próprio à função exercida por seu país desde muito tempo.
Finnegan Oldfield esteve no Brasil em 2016, ocasião em que
divulgou Os Cowboys durante o
Festival Varilux de Cinema Francês, no Rio de Janeiro e São Paulo. Filme atual
em relação à situação do Estado Islâmico e a adesão de jovens europeus à doutrina
de terror preconizada pela organização, Os
Cowboys, apesar de ter sua história centrada no final dos anos 1990 e
início dos anos 2000, traz uma reflexão precisa para o que acontece no velho
continente (principalmente na França) nos últimos anos.
Sobre esses aspectos da obra e outros assuntos, Finnegan Oldfield
conversou com o blog Película Virtual.
OS COWBOYS ME REMETEU EM DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS AO CLÁSSICO DE
JOHN FORD, RASTROS DE ÓDIO.
Sim, há diversas semelhantes. Mesmo não sendo uma refilmagem
e eu não tendo utilizado o Rastros de
Ódio em minha pesquisa, Thomas (Bidegan, diretor) me mostrou outros filmes
na construção de Os Cowboys, como Cidade das Ilusões (Fat City), de John Huston, que não chega a ser um western, mas é
uma obra que aborda a transmissão de uma pessoa para outra. É disso que fala o
filme, mas utilizando todo esse viés e os códigos todos dos filmes de faroeste.
Foi exatamente isso que ele quis fazer. Utilizando essa referência nos filmes
de faroeste, como o uso dos planos abertos de montanhas e paisagens, por
exemplo. Como no momento em que ele está fumando um cachimbo da paz junto aos
talibans, em outra cena vemos pessoas a emboscá-los de cima de um prédio como
se fossem índios nos desfiladeiros. A partir de um certo momento, o filme passa
a ser um faroeste, principalmente quando já o vemos com seu revolver em punho e
na cintura.
SEU PERSONAGEM NO
FILME É BEM SOLITÁRIO. COMO SE DEU A SUA CONSTRUÇÃO?
Eu li muitas vezes o roteiro. Foram muitas conversas com o
Thomas (Bidegain) sobre a personagem e suas ideias de como ele queria que esse
adolescente se transformasse em um homem, em um cowboy. E isso foi muito
interessante para o trabalho de ator e foi um desafio que eu encontrei para
fazer esse papel.
A FRANÇA VEM PASSANDO
POR UM PERÍODO CONTURBADO EM RELAÇÃO À POLÍTICA E A GUERRA CONTRA O EXTREMISMO
DE ORIGEM RELIGIOSA. COMO FOI ABORDAR ESSE TEMA NO FILME?
Curiosamente, no caso de Os
Cowboys, o filme foi feito antes dos atentados ao Charlie Hebbo, antes dos
atentados de novembro de 2015. Isso o torna um filme ainda mais atual. Outros
diretores realizaram trabalhos com temas relacionados e acabaram pagando o
preço de não ver suas obras sendo lançadas por conta do contexto. Os Cowboys foi lançado na França em 15
de novembro de 2015, dois dias após os atentados. A dúvida que surgiu na época
foi na possibilidade de lançá-lo ou não. Decidimos levar adiante a data
justamente para não deixar que o terrorismo começasse a dar as ordens no
cinema. Eu concordo com o Thomas Bidegain (diretor de Os Cowboys) quando ele diz que é preferível assistir a uma obra
como essa do que aos noticiários que ficam mostrando sem parar esse assunto. É
preferível ver um filme como esse do que os canais de notícias que exibem sem
parar imagens dos atentados sem se aprofundar nos fatos. Concordo que a gente
tem que estar informado sobre o que acontece, mas os filmes possuem uma outra
maneira de contar a história.
EXATAMENTE.
INCLUSIVE, ACHO QUE O FILME TEVE UMA CORAGEM IMPRESSIONANTE DE ABORDAR UM TEMA
TÃO DELICADO QUANTO A PRESENÇA DE CÉLULAS TERRORISTAS NA FRANÇA. E ISSO
JUSTAMENTE NA ÉPOCA DOS ATAQUES EM PARIS.
Foi complicado. Podemos dizer que esses fatos acabaram nos
alcançando. A realidade alcançou a ficção do filme. Quando fomos filmar na
Índia, todos nos diziam para ter cuidado por conta de riscos de terroristas e,
enquanto nós estávamos lá filmando, os atentados ao Charlie Hebdo aconteceram.
Bem ali, no centro de Paris. E decidimos continuar filmando. E essa foi a mesma
atitude quando chegou a hora de lançar o longa
QUAL A SUA POSIÇÃO
COMO CIDADÃO FRANCÊS DIANTE DESTE MOMENTO? É POSSÍVEL UMA COMPARAÇÃO COM A
POSTURA DOS ESTADUNIDENSES APÓS O 11 DE SETEMBRO?
É uma difícil comparação por conta da diferença de escalas
dos acontecimentos em relação a França e aos EUA. A nossa vida passou a ser
pontuada por atentados. A gente lembra do 11 de setembro, dos atentados a Londres,
a Madrid, ao Charlie Hebdo. E, ao mesmo tempo, estamos distantes disso tudo. É
um pouco disso que o filme fala, também. No filme, quando o personagem vê na TV
as torres gêmeas em chamas, ele se sente como se recebesse um cartão postal da
irmã pedindo por ajuda. E a gente na consegue entender o que significa enquanto não vivemos isso na casa da gente.
O FILME ABORDA UMA
QUESTÃO DELICADA QUE É A SEDUÇÃO DO ESTADO ISLÂMICO PARA COM JOVENS ÁRABES E
EUROPEUS. GEROU CONTROVÉRSIAS NA OCASIÃO DO LANÇAMENTO E PRODUÇÃO. DO MESMO
MODO, ELE ABORDA PONTOS RELACIONADOS A PRECONCEITOS, RACISMO E XENOFOBIA. COMO
SE DEU ESSA ABORDAGEM DO ROTEIRO?
O filme, na verdade, apresenta uma questão da emancipação
dessa jovem. Talvez, se ele se passasse em outra época, como os anos 1980, ela
talvez tivesse seguido para outro lugar, como Londres, morar em um cubículo e
ficar se drogando. E a historia começa antes disso, em 1997, quando ainda não
era comum que os jovens se juntassem ao Estado Islâmico. No fundo, é uma
história sobre pessoas comuns que vão se sentir aspiradas por essa agitação e
confusão que acontece no mundo. Em relação ao racismo, é verdade que o pai é
bem aquela figura francesa que tem aquela postura xenofóbica e alguns
comentários racistas acerca de imigrantes. Na metáfora do filme, o pai acaba
considerando que essas pessoas sejam como os índios. Já o filho, não. Ele passa
a ver os estrangeiros de uma maneira muito mais aberta. E isso é o que fará
dele um cowboy, um herói. O Thomas queria fazer um filme sobre essa abertura de
espírito. Sobre a mistura de raças. Sobre como é possível aprender as lições
dos seus ancestrais e de como o conhecimento passa de uma geração para outra.
EM SEUS FILMES ANTERIORES, HÁ UMA CONSTANTE ABORDAGEM DE CUNHO SEXUAL. COMO SE DERAM ESSAS ESCOLHAS?
Não cheguei a ver muitos filmes franceses com temáticas sexuais e não há muitos que sigam essa vertente. Em relação às minhas escolhas, são temas interessantes. Por isso eu aceitei fazer esses filmes. Para Mineurs 27, o que me interessou foi como uma pessoa consegue crescer tendo sido vitima de abusos, como ela consegue superar isso. Bang Gang seguiu o mesmo questionamento de como os jovens vivem essa liberdade sexual e experiências nas quais eles podem erra e em seguida se corrigir e superar tudo isso. Principalmente a visão que as outras pessoas têm disso em tempos nos quais as redes sociais são tão ativas.
QUAIS SÃO OS SEUS
PRÓXIMOS PROJETOS?
Já estou com um novo filme pronto, dirigido por Bertrand
Bonello (diretor de Os Amores da Casa de
Tolerância e Saint Laurent). O
filme se chama Nocturama e aborda um
grupo de jovens de esquerda que colocam bombas em Paris. São jovens que não
percebem muito bem o que estão fazendo, inconsequentes que começam a perceber
que fizeram algo muito errado e começam a perceber a gravidade de seus atos. É
quando o filme começa a ser algo que se passa entre quatro paredes. Esse roteiro foi escrito antes de todos os
atentados e se chamava antes Paris é uma
Festa, mas precisou ter seu título modificado.
Jonas e o Circo Sem Lona é daqueles tipos de filme que ficam com você. Eu o assisti em setembro de 2016, durante a projeção do Cachoeira Doc. Foi exibido no último dia do festival, na décima mostra competitiva. Lembro-me que, durante a cobertura da mostra, escrevi sobre todas as nove competitivas. Fiquei devendo a Paula Gomes um texto acerca de seu filme. Mas não porque não quis fazê-lo, mas, sim, pelo fato de que o impacto do longa, após uma semana intensa de festival, foi por demais intenso. Precisei parar para refletir sobre o filme mais a fundo. Durante a correria dacuradoria do Panorama Internacional Coisa de Cinema, não consegui rever o filme, muito menos escrever sobre ele. Mas, volta e meia, voltava a pensar naquela história. Jonas e o Circo sem Lona tem esse poder. É um filme que acompanha o espectador após o término da sessão. Digo isso não somente como um clichê para florear um texto crítico, mas por perceber a identificação que ele gerou. Na infância, muitos sonhos nos motiva. Muitos planos nos frustram. Ao crescer, a nostalgia acaba por nos invadir e, às vezes, machucar. O registro da rotina do pequeno Jonas pelo olhar atento de Paula me fez refletir acerca das escolhas que fazemos e como elas nos acompanham por toda a vida. Para o bem ou para mal (ops, mais um clichê). Perceber que Jonas escolheu bem seu futuro, resolvendo seguir aquilo que realmente o motivava, nos incentiva a seguir passos semelhantes. “Não tem como não ser Jonas e não se identificar neste sentido dos desafios e do que você escolheu para você. Como eu estou conseguindo manter meu sonho vivo, o filme, ao mesmo tempo, é um ato de desejar que ele, Jonas, consiga também. E ele está conseguindo. E isso é muito bom”, afirma Paula Gomes em um dos trechos desse papo. De fato, não tem como não ser Jonas.
Confira abaixo a conversa na íntegra.
PAULA, APÓS VÁRIOS FESTIVAIS, O FILME FINALMENTE CHEGA AO CIRCUITO COMERCIAL E AO PÚBLICO GERAL. QUAL A SENSAÇÃO?
É uma emoção enorme. A gente fica muito feliz por vários motivos. Porque a caminhada foi longa, foi difícil, mas, também, porque a gente sabe que o nosso problema ainda é essa parte da cadeia. A parte da distribuição. No drama da produção, a gente meio que conseguiu ter um fluxo de uns anos para cá. Com todas as políticas, com a forma como a gente aprendeu a fazer. Então, estrear comercialmente nos deixa realmente muito felizes. Também pela trajetória do filme, porque ele vai poder chegar em vários lugares. São vinte cidades no Brasil. A gente está muito emocionado com isso. E esperamos que as pessoas possam assistir, possam dividir um pouco dessa história com a gente.
VOCÊ ENCERRA UM CICLO. TERMINA A CORRERIA COM FESTIVAIS E ENTRA NO CONTATO COM O PÚBLICO GERAL. VOCÊ TOCOU NO PONTO QUE A DISTRIBUIÇÃO FOI UM DOS PONTOS MAIS DIFÍCEIS EM TUDO ISSO. QUAIS FORAM OS PARCEIROS DE DISTRIBUIÇÃO?
O filme está sendo distribuído pela Vitrine Filmes, através de um projeto que eles têm chamado Sessão Vitrine Petrobras. Um projeto muito bacana que reuniu mais ou menos vinte filmes brasileiros que tiveram destaque no ano passado em festivais. Filmes que foram premiados. Então, eu acho que ir de grupo, ir de galera (risos) fortalece todos os filmes. Eles são lançados um de cada vez neste circuito de vinte cidades. Isso é muito legal.
Paula, Jonas e parte da equipe da Plano 3 Filmes
VOCÊ ACERTA AO FUGIR DE UM FORMATO CONVENCIONAL DE DOCUMENTÁRIOS, ALGO QUE JÁ É BEM BATIDO NO USO DE CABEÇAS FALANTES. VOCÊ, NO ENTANTO, PREFERE ABORDAR A HISTÓRIA DO JONAS DENTRO DA SUA ROTINA, DENTRO DA SUA REALIDADE. COMO FOI ESSE PROCESSO DE ESCOLHA?
Então, eu acho que o filme se encaixa muito bem em um gênero que é o documentário de criação,que ainda não é tão popular aqui no Brasil. No filme, a gente opta por trabalhar muito com o encontro. O documentário ele acontece não porque existe um objeto, mas porque existe um objeto e um sujeito. E em algum momento esses dois se encontraram, as histórias se cruzaram, e, por algum tipo de gesto, de amor, de ódio, do que for, a gente decide viver uma história juntos. Então, a partir do momento em que a gente encara o filme como um documentário de criação, muita coisa fica para trás. Uma suposta objetividade, uma imparcialidade, que a gente sabe que não existe. Eu estou pessoalmente interessada em fazer filmes onde eu esteja envolvida, sabe? Onde muito claramente há um ponto de vista. Onde muito claramente há uma interferência. O filme trabalha isso de uma forma muito honesta. Porque esse era o pacto com Jonas. Porque esse era o pacto com os personagens. Então, a gente entra para viver essa aventura juntos, que a gente não sabe como vai terminar, mas sabe o ponto de partida. Conhece os conflitos que podem surgir, porque foi feito uma pesquisa antes. O Jonas trabalha muito por essa linha. Eu acho sempre mais honesto, mais bacana. Acho até filmicamente mais interessante que quando a gente vá fazer um doc, possamos assumir a equipe. Assumir a interferência. Porque aquela história só aconteceu naquele tempo e naquele espaço daquela forma porque estávamos filmando. Se a gente não estivesse ali, era outra história. Então, nada mais honesto que possamos compartilhar o processo, também.
HÁ UMA CUMPLICIDADE BEM BONITA ENTRE VOCÊ E O JONAS. O FINAL EU ACHO DE UMA BELEZA ÍMPAR.
Sim, existe uma cumplicidade muito forte. Eu conheço o Jonas há muitos anos. Minha relação com a família dele tem dez anos. Desde que eu conheci a mãe dele, fiquei muito próxima.
COMO FOI QUE VOCÊ DESCOBRIU O JONAS?
Há dez anos, a gente ia filmar um curta de ficção junto com o meu coletivo (N.E. O coletivo Plano 3 Filmes). E o curta tinha ver a ver com o universo do circo. E todo mundo perguntava para gente: “Ah, vocês vão fazer um curta felliniano?” E a gente começou a descobrir que tinha uma visão do circo muito presa a Fellini. Muito presa a um universo mais fantástico e a gente queria retratar um circo mais real, nordestino, mais da gente. E aí entramos no carro e viajamos para pesquisar. Íamos visitar três circos em um final de semana. Meio que procurando locações, procurando informações. E foi tão incrível que essa viagem de três circos em um final de semana virou três meses e trinta e cinco circos pesquisados. Na época, eu escrevi muito. Pelo fato de eu reunir muito material, acabei sendo convidada a assumir o Núcleo de Artes Circenses aqui da Secretaria de Cultura. E a família de Jonas morava em um desses circos que eu visitei. Foi quando conheci a família dele, acompanhei quando eles deixaram o circo e se estabeleceram na Região Metropolitana de Salvador. De certa forma, eu vinha acompanhando o crescimento de Jonas. Até que um dia ele me liga e fala: “Olha, eu tenho uma novidade. Agora eu sou dono de circo. Tenho meu próprio circo e queria te convidar para assistir ao espetáculo.” Aí eu fui com os meninos do coletivo à casa dele e, nos fundos, tinha um circo armado que ele construiu com o que sobrou desse antigo circo da família. Aquelas arquibancadas velhas, pedaços de lona, uns figurinos. Quando eu cheguei, fiquei muito encantada e já senti que naquele quintal ali tinha um filme. Só não sabia ainda qual era esse filme. Isso eu só descobri depois. Mas tive imediatamente essa sensação de que havia uma história muito legal ali.
HÁ UMA RIMA INTERESSANTE AO OBSERVARMOS O JONAS COMO UM ARTISTA LIBERTÁRIO AO FAZERMOS UMA COMPARAÇÃO DELE COM OS ARTISTAS ORIUNDOS DO AUDIOVISUAL BRASILEIRO E, PRINCIPALMENTE, BAIANO. O MODO COMO ELE É REGRADO PELAS AUTORIDADES DE SUA FAMÍLIA E ESCOLA, QUE TENTAM IMPEDI-LO DE SEGUIR SUA ARTE. VOCÊ TEM ESSA IMPRESSÃO, TAMBÉM?
Tenho, sim. Eu tenho, sobretudo, uma identificação muito profunda com ele. Com a sua história. E me inspira muito no sentido que ele tinha um sonho que era o circo. Ele saiu do circo e conseguiu, sozinho, mantê-lo vivo, ali no quintal de sua casa. E isso não tem como não me inspirar. Porque é a mesmo no meu lugar, no cinema que eu faço. Aqui, eu também dependo, como eu falo no filme, dos meus amigos para fazer. Também é um sonho que sempre tem conflitos, que sempre tem obstáculos. A gente brinca aqui no coletivo que somos todos Jonas. Porque também somos esses meninos que sentavam no fundo da sala de aula. E que também eram cobrados dessa forma. E que até hoje, fazendo cinema em um mundo que te diz todos os dias: “seja médico, seja advogado, faça concurso, tenha um emprego.” Não tem como não ser Jonas e não se identificar neste sentido dos desafios e do que você escolheu para você. Como eu estou conseguindo manter meu sonho vivo, também, o filme, ao mesmo tempo, é um ato de desejar que ele, Jonas, consiga também. E ele está conseguindo. E isso é muito bom.
A CENA DO CONFLITO COM A DIRETORA DA ESCOLA DE JONAS FAZ AQUELE SERMÃO É BEM SIMBÓLICA NESTE SENTIDO.
Sim. O tempo todo a gente enfrentava algum conflito. Porque como a gente estava na escola todos os dias, nós viramos os intermediários. O Jonas aprontava muito. Então, toda vez que isso acontecia, ao invés de ligar para a mãe dele, a diretora ligava para mim, porque eu estava ali, mais próxima. E estes conflitos, ao invés de nos afastar, nos aproximaram muito da dela. Porque ela estava dentro de uma lógica que eu, naquele momento, não concordava, mas que eu conseguia entender. Porque também é muito difícil para o professor, dentro do sistema em que ele está, ser o único individuo que enxerga, que não quer castrar, que quer libertar. Então, também, é difícil quando você entende o sistema inteiro. Foi uma surpresa muito gratificante. Porque a gente filmou muito tempo. Foram dois anos. Quando terminamos, dois anos e pouco depois que tínhamos começado, os personagens já não eram mais os mesmos. Todo mundo tinha amadurecido. Todo mundo tinha um ponto de vista diferente. E teve um dia que ela falou para mim que ela percebia naquele momento, naquele tempo ali, que não só Jonas era ruim para a escola. Mas que, também, a escola era ruim para Jonas. E isso foi maravilhoso. Porque Jonas se transformou, ela se transformou, a gente se transformou. Foi um filme muito intenso e muito transformador para todo mundo.
QUAL É O PRÓXIMO PROJETO AGORA, PAULA?
A gente acabou de filmar um longa de ficção chamado Filho de Boi. É do nosso coletivo. Neste, eu sou produtora e co-roteirista, porque a gente se alterna nas funções. E quem dirige é o Haroldo (Borges) e o Ernesto (Molinero). Filmamos no sertão da Bahia, um processo que foi muito modificado depois de Jonas. É um roteiro mais antigo. Mas depois filmamos Jonas, transformamos o projeto inteiro. A gente está muito apaixonada pelo documentário e buscamos ferramentas para deixar essa ficção com um perfil mais relacionado com documentário. Por exemplo, optamos trabalhar com não atores. Fizemos uma pesquisa enorme para encontrar o protagonista. Entrevistamos 1500 meninos, todos do sertão da Bahia, todos de escola pública e moradores de áreas rurais. E trabalhamos com Fátima Toledo (conceituada preparadora de elenco que se destacou em filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite). Fátima super topou o projeto. Ela veio e fez uma super preparação neste sentido. E o mais legal é que o Jonas fez o filme. Dessa vez, como ator. E também aprendendo uma nova função. Ele quer fazer Cinema após terminar seu último ano da escola. Ano que vem quer fazer vestibular para Cinema. Aqui, ele quis aprender mais e trabalhou, também, como segundo assistente de câmera.
Jonas e o Circo sem Lona (Brasil, 2016) Direção: Paula Gomes. Com Jonas Laborda.
Por João Paulo Barreto
Em seu último momento, Jonas e o Circo sem Lona traz uma pergunta feita pelo pequeno protagonista à diretora Paula Gomes: “O final do meu filme vai ser assim, triste?” Ao ouvi-lo, Paula lhe concede um cafuné e uma resposta confortadora: “Esse é o final desse filme, não do seu filme.” Um carinho que denota justamente a cumplicidade de projeto com o seu sujeito de análise. E durante os breves 81 minutos de projeção, é justamente perante a isso que o público se vê. A construção precisa de um personagem de um modo em que a equipe de produção se insere naquele ambiente. Ao subir dos créditos, percebemos ter estado diante de um documentário de criação no qual as barreiras que separam Jonas de seu destino nos são apresentadas, mas é justamente o superar delas o principal intento a ser demonstrado aqui.
Existe uma identificação plena do espectador com Jonas. A câmera de Gomes nos coloca dentro do dia-a-dia do garoto. Convida-nos a participar de sua rotina de férias escolares, quando decide montar um circo no quintal de sua casa. Um circo feito com material oriundo do antigo local onde sua família viveu, e onde sua mãe, que naturalmente se preocupa com o fato de que dedicação do filho é grande com o espetáculo e não tanto com a escola, trabalhou durante a juventude. Não que ela imponha sua vontade de modo ditatorial. O que acontece aqui é o receio natural de pais pelo futuro de seus rebentos. E para ela, o circo não trará nenhum para o seu garoto. Jonas, no entanto, possui aquela arte em seus genes. Algo do qual ele não foge, sendo aquilo o que realmente o move.
Jonas e sua mãe: conflitos e a natural preocupação materna
O esmero do olhar de Paula Gomes ao registrar toda a trajetória do menino Jonas é notável. Desde a não adaptação a uma escola que o restringe de sua paixão, demonstrando um modelo educacional falho, cujas prioridades, claro, são determinadas pelo mercado de trabalho (o momento em que a diretora da escola se queixa perante a câmera é um achado para o filme), passando pelas experiências marcantes daquela fase, como paqueras e o primeiro beijo, o registro tanto das alegrias quanto das frustrações do rapazinho trazem para o longa metragem um equilíbrio essencial. Isso é perceptível, também, pela opção em não se render ao romantizar da arte circense. A discussão oferecida em Jonas e o Circo sem Lona não visa fantasiar com escapismos lúdicos oriundos daquela arte. Mas, claro, isso não significa dizer que sua magia não se faz presente. No entanto, tal percepção é destinada ao espectador, sem a necessidade que a narrativa venha lhe impor. O que percebemos é o contar de uma história na qual os percalços da infância são colocados em evidência.
Jonas e o local onde consegue se encontrar
Trata-se de uma fase de descobertas. Uma fase na qual a percepção de uma vocação se fez presente. Jonas se entrega àquilo com tudo o que pode. Seu interesse não é fugaz. Não se trata de algo que logo será suplantado por outra coisa. Seu foco é perceptível. Enquanto outros de sua trupe logo se vêem diante de cobranças e interesses que os fazem se distanciar daquela diversão, para Jonas aquilo é algo que se situa em outro patamar de prioridades. Talvez por isso a decepção o atinja de modo tão doloroso. E, por consequência, ao espectador. E nisso está mais um acerto de Paula Gomes e de seu coletivo no entregar de sua história. Ao atingir o público de modo tão certeiro, ela nos coloca diante do anseio do pequeno Jonas. E o sentimento passa a ser compartilhado. Poucos filmes conseguem esse intento. Jonas e o Circo sem Lona, felizmente e dolorosamente, é um deles.
(Brasil, 2016) Direção: Paula Gomes. Com Jonas Laborda.
Por João Paulo Barreto
Em seu último momento, Jonas
e o Circo sem Lona traz uma pergunta feita pelo pequeno protagonista à
diretora Paula Gomes: “O final do meu filme vai ser assim, triste?” Ao ouvi-lo,
Paula lhe concede um cafuné e uma resposta confortadora: “Esse é o final desse
filme, não do seu filme.” Um carinho que denota justamente a cumplicidade de
projeto com o seu sujeito de análise. E durante os breves 81 minutos de
projeção, é justamente perante a isso que o público se vê. A construção precisa
de um personagem de um modo em que a equipe de produção se insere naquele
ambiente. Ao subir dos créditos, percebemos ter estado diante de um
documentário de criação no qual as barreiras que separam Jonas de seu destino
nos são apresentadas, mas é justamente o superar delas o principal intento a
ser demonstrado aqui.
Existe uma identificação plena do espectador com Jonas. A câmera
de Gomes nos coloca dentro do dia-a-dia do garoto. Convida-nos a participar de
sua rotina de férias escolares, quando decide montar um circo no quintal de sua
casa. Um circo feito com material oriundo do antigo local onde sua família
viveu, e onde sua mãe, que naturalmente se preocupa com o fato de que dedicação
do filho é grande com o espetáculo e não tanto com a escola, trabalhou durante
a juventude. Não que ela imponha sua vontade de modo ditatorial. O que acontece
aqui é o receio natural de pais pelo futuro de seus rebentos. E para ela, o
circo não trará nenhum para o seu garoto. Jonas, no entanto, possui aquela arte
em seus genes. Algo do qual ele não foge, sendo aquilo o que realmente o move.
Jonas e sua mãe: conflitos e a natural preocupação materna
O esmero do olhar de Paula Gomes ao registrar toda a
trajetória do menino Jonas é notável. Desde a não adaptação a uma escola que o
restringe de sua paixão, demonstrando um modelo educacional falho, cujas
prioridades, claro, são determinadas pelo mercado de trabalho (o momento em que
a diretora da escola se queixa perante a câmera é um achado para o filme), passando
pelas experiências marcantes daquela fase, como paqueras e o primeiro beijo, o
registro tanto das alegrias quanto das frustrações do rapazinho trazem para o
longa metragem um equilíbrio essencial. Isso é perceptível, também, pela opção
em não se render ao romantizar da arte circense. A discussão oferecida em Jonas e o Circo sem Lona não visa fantasiar
com escapismos lúdicos oriundos daquela arte. Mas, claro, isso não significa
dizer que sua magia não se faz presente. No entanto, tal percepção é destinada
ao espectador, sem a necessidade que a narrativa venha lhe impor. O que
percebemos é o contar de uma história na qual os percalços da infância são colocados
em evidência.
Jonas e o local onde consegue se encontrar
Trata-se de uma fase de descobertas. Uma fase na qual a
percepção de uma vocação se fez presente. Jonas se entrega àquilo com tudo o
que pode. Seu interesse não é fugaz. Não se trata de algo que logo será
suplantado por outra coisa. Seu foco é perceptível. Enquanto outros de sua
trupe logo se vêem diante de cobranças e interesses que os fazem se distanciar
daquela diversão, para Jonas aquilo é algo que se situa em outro patamar de
prioridades. Talvez por isso a decepção o atinja de modo tão doloroso. E, por
consequência, ao espectador. E nisso está mais um acerto de Paula Gomes e de
seu coletivo no entregar de sua história. Ao atingir o público de modo tão
certeiro, ela nos coloca diante do anseio do pequeno Jonas. E o sentimento
passa a ser compartilhado. Poucos filmes conseguem esse intento. Jonas e o Circo sem Lona, felizmente e
dolorosamente, é um deles.
Paula, Jonas e parte da equipe do coletivo Plano 3 Filmes
Jonas e o Circo Sem
Lona é daqueles tipos de filme que ficam com você. Eu o assisti em setembro
de 2016, durante a projeção do Cachoeira Doc. Foi exibido no último dia do
festival, na décima mostra competitiva. Lembro-me que, durante a cobertura da
mostra, escrevi sobre todas as nove competitivas. Fiquei devendo a Paula Gomes
um texto acerca de seu filme. Mas não porque não quis fazê-lo, mas, sim, pelo
fato de que o impacto do longa, após uma semana intensa de festival, foi por
demais intenso. Precisei parar para refletir sobre o filme mais a fundo. Durante
a correria dacuradoria do Panorama Internacional Coisa de Cinema, não
consegui rever o filme, muito menos escrever sobre ele. Mas, volta e meia,
voltava a pensar naquela história. Jonas
e o Circo sem Lona tem esse poder. É um filme que acompanha o espectador após
o término da sessão. Digo isso não somente como um clichê para florear um texto
crítico, mas por perceber a identificação que ele gerou. Na infância, muitos
sonhos nos motiva. Muitos planos nos frustram. Ao crescer, a nostalgia acaba
por nos invadir e, às vezes, machucar. O registro da rotina do pequeno Jonas
pelo olhar atento de Paula me fez refletir acerca das escolhas que fazemos e
como elas nos acompanham por toda a vida. Para o bem ou para mal (ops, mais um
clichê). Perceber que Jonas escolheu bem seu futuro, resolvendo seguir aquilo
que realmente o motivava, nos incentiva a seguir passos semelhantes. “Não tem
como não ser Jonas e não se identificar neste sentido dos desafios e do que
você escolheu para você. Como eu estou conseguindo manter meu sonho vivo, o
filme, ao mesmo tempo, é um ato de desejar que ele, Jonas, consiga também. E
ele está conseguindo. E isso é muito bom”, afirma Paula Gomes em um dos trechos
desse papo. De fato, não tem como não ser
Jonas.
Confira abaixo a conversa na íntegra.
PAULA, APÓS VÁRIOS
FESTIVAIS, O FILME FINALMENTE CHEGA AO CIRCUITO COMERCIAL E AO PÚBLICO GERAL.
QUAL A SENSAÇÃO?
É uma emoção enorme. A gente fica muito feliz por vários
motivos. Porque a caminhada foi longa, foi difícil, mas, também, porque a gente
sabe que o nosso problema ainda é essa parte da cadeia. A parte da distribuição.
No drama da produção, a gente meio que conseguiu ter um fluxo de uns anos para
cá. Com todas as políticas, com a forma como a gente aprendeu a fazer. Então,
estrear comercialmente nos deixa realmente muito felizes. Também pela
trajetória do filme, porque ele vai poder chegar em vários lugares. São vinte
cidades no Brasil. A gente está muito emocionado com isso. E esperamos que as
pessoas possam assistir, possam dividir um pouco dessa história com a gente.
VOCÊ ENCERRA UM
CICLO. TERMINA A CORRERIA COM FESTIVAIS E ENTRA NO CONTATO COM O PÚBLICO GERAL.
VOCÊ TOCOU NO PONTO QUE A DISTRIBUIÇÃO FOI UM DOS PONTOS MAIS DIFÍCEIS EM TUDO
ISSO. QUAIS FORAM OS PARCEIROS DE DISTRIBUIÇÃO?
O filme está sendo distribuído pela Vitrine Filmes, através
de um projeto que eles têm chamado Sessão Vitrine Petrobras. Um projeto muito
bacana que reuniu mais ou menos vinte filmes brasileiros que tiveram destaque
no ano passado em festivais. Filmes que foram premiados. Então, eu acho que ir
de grupo, ir de galera (risos) fortalece todos os filmes. Eles são lançados um
de cada vez neste circuito de vinte cidades. Isso é muito legal.
VOCÊ ACERTA AO FUGIR DE
UM FORMATO CONVENCIONAL DE DOCUMENTÁRIOS, ALGO QUE JÁ É BEM BATIDO NO USO DE
CABEÇAS FALANTES. VOCÊ, NO ENTANTO, PREFERE ABORDAR A HISTÓRIA DO JONAS DENTRO
DA SUA ROTINA, DENTRO DA SUA REALIDADE. COMO FOI ESSE PROCESSO DE ESCOLHA?
Então, eu acho que o filme se encaixa muito bem em um gênero
que é o documentário de criação,que ainda não é tão popular aqui no Brasil. No
filme, a gente opta por trabalhar muito com o encontro. O documentário ele
acontece não porque existe um objeto, mas porque existe um objeto e um sujeito.
E em algum momento esses dois se encontraram, as histórias se cruzaram, e, por
algum tipo de gesto, de amor, de ódio, do que for, a gente decide viver uma
história juntos. Então, a partir do momento em que a gente encara o filme como
um documentário de criação, muita coisa fica para trás. Uma suposta
objetividade, uma imparcialidade, que a gente sabe que não existe. Eu estou
pessoalmente interessada em fazer filmes onde eu esteja envolvida, sabe? Onde
muito claramente há um ponto de vista. Onde muito claramente há uma
interferência. O filme trabalha isso de uma forma muito honesta. Porque esse
era o pacto com Jonas. Porque esse era o pacto com os personagens. Então, a
gente entra para viver essa aventura juntos, que a gente não sabe como vai
terminar, mas sabe o ponto de partida. Conhece os conflitos que podem surgir,
porque foi feito uma pesquisa antes. O Jonas
trabalha muito por essa linha. Eu acho sempre mais honesto, mais bacana. Acho
até filmicamente mais interessante que quando a gente vá fazer um doc, possamos
assumir a equipe. Assumir a interferência. Porque aquela história só aconteceu
naquele tempo e naquele espaço daquela forma porque estávamos filmando. Se a
gente não estivesse ali, era outra história. Então, nada mais honesto que possamos
compartilhar o processo, também.
HÁ UMA CUMPLICIDADE
BEM BONITA ENTRE VOCÊ E O JONAS. O FINAL EU ACHO DE UMA BELEZA ÍMPAR.
Sim, existe uma cumplicidade muito forte. Eu conheço o Jonas
há muitos anos. Minha relação com a família
dele tem dez anos. Desde que eu
conheci a mãe dele, fiquei muito próxima.
COMO FOI QUE VOCÊ
DESCOBRIU O JONAS?
Há dez anos, a gente ia filmar um curta de ficção junto com
o meu coletivo (N.E. O coletivo Plano 3
Filmes). E o curta tinha ver a ver com o universo do circo. E todo mundo
perguntava para gente: “Ah, vocês vão fazer um curta felliniano?” E a gente
começou a descobrir que tinha uma visão do circo muito presa a Fellini. Muito
presa a um universo mais fantástico e a gente queria retratar um circo mais
real, nordestino, mais da gente. E aí entramos no carro e viajamos para
pesquisar. Íamos visitar três circos em um final de semana. Meio que procurando
locações, procurando informações. E foi tão incrível que essa viagem de três
circos em um final de semana virou três meses e trinta e cinco circos
pesquisados. Na época, eu escrevi muito. Pelo fato de eu reunir muito material,
acabei sendo convidada a assumir o Núcleo de Artes Circenses aqui da Secretaria
de Cultura. E a família de Jonas morava em um desses circos que eu visitei. Foi quando conheci a família dele,
acompanhei quando eles deixaram o circo e se estabeleceram na Região Metropolitana
de Salvador. De certa forma, eu vinha acompanhando o crescimento de Jonas. Até
que um dia ele me liga e fala: “Olha, eu tenho uma novidade. Agora eu sou dono
de circo. Tenho meu próprio circo e queria te convidar para assistir ao
espetáculo.” Aí eu fui com os meninos do
coletivo à casa dele e, nos fundos, tinha um circo armado que ele construiu com
o que sobrou desse antigo circo da família. Aquelas arquibancadas velhas, pedaços
de lona, uns figurinos. Quando eu cheguei, fiquei muito encantada e já senti
que naquele quintal ali tinha um filme. Só não sabia ainda qual era esse filme.
Isso eu só descobri depois. Mas tive imediatamente essa sensação de que havia
uma história muito legal ali.
HÁ UMA RIMA
INTERESSANTE AO OBSERVARMOS O JONAS COMO UM ARTISTA LIBERTÁRIO AO FAZERMOS UMA
COMPARAÇÃO DELE COM OS ARTISTAS ORIUNDOS DO AUDIOVISUAL BRASILEIRO E,
PRINCIPALMENTE, BAIANO. O MODO COMO ELE É REGRADO PELAS AUTORIDADES DE SUA
FAMÍLIA E ESCOLA, QUE TENTAM IMPEDI-LO DE SEGUIR SUA ARTE. VOCÊ TEM ESSA IMPRESSÃO,
TAMBÉM?
Tenho, sim. Eu tenho, sobretudo, uma identificação muito
profunda com ele. Com a sua história. E me inspira muito no sentido que ele tinha
um sonho que era o circo. Ele saiu do circo e conseguiu, sozinho, mantê-lo vivo,
ali no quintal de sua casa. E isso não tem como não me inspirar. Porque é a
mesmo no meu lugar, no cinema que eu faço. Aqui, eu também dependo, como eu
falo no filme, dos meus amigos para fazer. Também é um sonho que sempre tem
conflitos, que sempre tem obstáculos. A gente brinca aqui no coletivo que somos
todos Jonas. Porque também somos esses meninos que sentavam no fundo da sala de
aula. E que também eram cobrados dessa forma. E que até hoje, fazendo cinema em
um mundo que te diz todos os dias: “seja médico, seja advogado, faça concurso,
tenha um emprego.” Não tem como não ser Jonas e não se identificar neste
sentido dos desafios e do que você escolheu para você. Como eu estou
conseguindo manter meu sonho vivo, também, o filme, ao mesmo tempo, é um ato de
desejar que ele, Jonas, consiga também. E ele está conseguindo. E isso é muito
bom.
A CENA DO CONFLITO
COM A DIRETORA DA ESCOLA DE JONAS FAZ AQUELE SERMÃO É BEM SIMBÓLICA NESTE
SENTIDO.
Sim. O tempo todo a gente enfrentava algum conflito. Porque
como a gente estava na escola todos os dias, nós viramos os intermediários. O
Jonas aprontava muito. Então, toda vez que isso acontecia, ao invés de ligar
para a mãe dele, a diretora ligava para mim, porque eu estava ali, mais
próxima. E estes conflitos, ao invés de nos afastar, nos aproximaram muito da dela.
Porque ela estava dentro de uma lógica que eu, naquele momento, não concordava,
mas que eu conseguia entender. Porque também é muito difícil para o professor,
dentro do sistema em que ele está, ser o único individuo que enxerga, que não
quer castrar, que quer libertar. Então, também, é difícil quando você entende o
sistema inteiro. Foi uma surpresa muito gratificante. Porque a gente filmou
muito tempo. Foram dois anos. Quando terminamos, dois anos e pouco depois que
tínhamos começado, os personagens já não eram mais os mesmos. Todo mundo tinha
amadurecido. Todo mundo tinha um ponto de vista diferente. E teve um dia que
ela falou para mim que ela percebia naquele momento, naquele tempo ali, que não
só Jonas era ruim para a escola. Mas que, também, a escola era ruim para Jonas.
E isso foi maravilhoso. Porque Jonas se transformou, ela se transformou, a
gente se transformou. Foi um filme muito intenso e muito transformador para
todo mundo.
QUAL É O PRÓXIMO
PROJETO AGORA, PAULA?
A gente acabou de filmar um longa de ficção chamado Filho de Boi. É do nosso coletivo. Neste,
eu sou produtora e co-roteirista, porque a gente se alterna nas funções. E quem
dirige é o Haroldo (Borges) e o Ernesto (Molinero). Filmamos no sertão da
Bahia, um processo que foi muito modificado depois de Jonas. É um roteiro mais antigo. Mas depois filmamos Jonas, transformamos o projeto inteiro.
A gente está muito apaixonada pelo documentário e buscamos ferramentas para
deixar essa ficção com um perfil mais relacionado com documentário. Por
exemplo, optamos trabalhar com não atores. Fizemos uma pesquisa enorme para
encontrar o protagonista. Entrevistamos 1500 meninos, todos do sertão da Bahia,
todos de escola pública e moradores de áreas rurais. E trabalhamos com Fátima
Toledo (conceituada preparadora de elenco
que se destacou em filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite). Fátima
super topou o projeto. Ela veio e fez uma super preparação neste sentido. E o
mais legal é que o Jonas fez o filme. Dessa vez, como ator. E também aprendendo
uma nova função. Ele quer fazer Cinema após terminar seu último ano da escola.
Ano que vem quer fazer vestibular para Cinema. Aqui, ele quis aprender mais e trabalhou, também, como segundo assistente de câmera.
(Silence, EUA, 2016) Direção: Martin
Scorsese. Com Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Yôsuke Kubozuka.
Por João
Paulo Barreto
Martin Scorsese traz para Silêncio uma análise de um elemento comum à sua filmografia. Porém,
aqui, o aprofundamento de tal questão avança em um patamar ainda maior do que o
visto em outros dos seus filmes. Trata-se da culpa católica que vimos, por
exemplo, no tormento do Charlie de Harvey Keitel, em Mean Streets, ao brincar com as velas de um altar prevendo como
seria quente o suposto fogo do inferno, ou até mesmo a crença cambaleante de um
não menos atormentado Jesus ao contestar sua própria fé em A Última Tentação de Cristo.
O tormento dos jovens padres portugueses Rodrigues e Garupe
em relação à própria fé, no entanto, reside não somente no receio de que a
força na qual eles acreditam possa vir a falhar e que ambos sejam condenados.
Aqui, esse medo não é individualista. Pelo contrário. A morte ou a vida de inocentes
dependerá da força que ambos possuem em suas crenças. Em Silêncio, a tal culpa extrapola qualquer terreno imaginário dentro
da religião e passa a figurar dentro do perigo real e imediato que o ceifar de
vidas de pessoas que apenas buscam uma representação e uma fuga para o
sofrimento que o seu meio as infringe.
Garupe e Rodrigues em perigoso solo japonês
Longe de ser um trabalho catequizador, o longa de Scorsese
oferece uma reflexão acerca do diálogo entre dois tipos distintos de fé. Não seria
correto, entretanto, inserir o budismo, religião pregada no Japão do século
XVII e período abordado pelo filme, como sendo a origem de um desses tipos de fé
que a obra busca colocar em análise. A filosofia budista em Silêncio não é demonstrada em seus
costumes ou hábitos. Apenas o uso dela por tiranos de uma forma a dominar e
manter um controle intelectual, físico e financeiro de um povo. Ao colocar o
catolicismo como uma saída para aquelas pessoas, o roteiro de Scorsese e Jay
Cocks, por sua vez baseado no livro de Shûsaku Endô, não o privilegia como
sendo o caminho da salvação para elas. Ele o coloca, sim, como um modo de
mudança de horizontes para os camponeses explorados e como um risco de ruína a
um amplo e eficiente modus operandi
de um sistema de governo.
Contidos com fúria e violência, jesuítas portugueses são torturados
e mortos pelo inquisidor japonês na tentativa de expurgar qualquer conceito ou
fé católica das pessoas com as quais eles tiveram contato. No entanto, padre
Ferreira, vivido por Liam Neeson, é levado de forma a servir como um exemplo
mais eficiente da brutalidade com a qual serão contidos os levantes religiosos
que contrariem a ordem local. É na busca pelo seu mentor que os jovens
Rodrigues e Garupe seguem para o Japão na tentativa de rastreá-lo.
Padre Ferreira têm sua crença sufocada de modo a salvar inocentes
Em uma de suas cenas, vemos o personagem de Andrew Garfield,
padre Rodrigues, dialogar acerca da inserção de sua religião em solo japonês.
As palavras do inquisidor com quem ele conversa compara países como Inglaterra,
Holanda, Espanha e Portugal, falando acerca da pretensa verdade oferecida por
cada um deles e do modo como todos possuem interesse em espalhar suas crenças
pelo Japão. Em uma eficiente metáfora, o fato de que nada cresceria em um solo
pantanoso como o daquele país é posto em evidência. “O que faz da sua verdade
algo mais válido do que as dos outros países?”, pergunta o japonês a Rodrigues.
Ele apenas sorri respondendo ser aquela a sua única verdade. É uma cena cujo
simbolismo prima no demonstrar a insensatez em ambos os lados. O do catequizador,
que aqui visa espalhar a palavra bíblica como sendo a verdade, mas sem perceber
os reais interesses econômicos por trás de tal invasão religiosa (ou fingindo não
perceber), e o do inquisidor, que já conhece o poder de dominação de sua crença
e sabe que não pode ousar perdê-lo para nenhum outro tipo de fé, principalmente
a oriunda do ocidente.
Observando o modo como as grandes navegações inseriram a
igreja católica como uma instituição multibilionária em todo o mundo até os
dias de hoje, não é de causar surpresa o interesse japonês em refutar qualquer
tipo de crença oriunda da bíblia em seu solo.
Fé expurgada a qualquer modo
Entretanto, a intenção de Silêncio é outra. O que Scorsese propõe aqui é uma discussão acerca
do valor da vida humana acima de qualquer fé. Seja ela ocidental ou oriental.
Em cenas cujo primor entrega a longa experiência do cineasta (observe a
sequência envolvendo o subir da maré), a elegância estética de Silêncio se equipara com o peso de sua
narrativa. É filme denso, no qual o teor de sua reflexão permanece com o
espectador durante muito tempo após o subir dos créditos. Ateus ou religiosos
encontraram um modo de análise muito pertinente na obra.
Em um impactante momento do filme, vemos o padre Ferreira
conversar com Rodrigues enquanto este se lamenta pelo sofrimento de fieis
japoneses que seguem torturados e dependentes de uma renúncia do padre. “Não os
compare a Jesus. Eles sofrem como ele, mas não têm o seu orgulho. Você não tem
o direito de fazê-los sofrer. Eu escutei os seus lamentos de sofrimento desta
mesma cela onde você está preso agora. Eu escolhi agir.” Ao final, é justamente
esse tipo de reflexão que Silêncio nos
faz exercer. A vida está acima de qualquer crença. De qualquer fé.
Rodrigues pergunta ao seu deus se está rezando para o
silêncio. A resposta lhe ocorre de modo, ao mesmo tempo, tenro e brutal. Ações e
razão se sobrepõem à qualquer supostamente inabalável fé.