terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Dorminhoco

(Sleeper, EUA, 1973) Direção: Woody Allen. Com Woody Allen, Diane Keaton, John Beck, Don Keefer.


Sexto filme da carreira de Woody Allen, Dorminhoco (1973) o diretor ainda mantinha uma veia cômica escrachada e pastelão, algo que, com o passar dos anos, foi ficando mais sutil em sua filmografia. Neste ainda vemos um modo de fazer humor mais galgado na presença física de Allen, que sabe utilizar sua hilária aparência para fazer rir, além de abusar das gags clássicas como a de lambuzar rostos alheios ou mastigar inesperados objetos, como uma luva cirúrgica, tudo, claro, ao som do típico jazz preferido do cineasta.

Woody interpreta, como de hábito, a si mesmo. Ele é Miles Monroe, um tocador de clarinete que acorda 200 anos no futuro após ser congelado em 1973 depois de visitar o médico por conta de uma úlcera (!). Na nova realidade, muitos dos valores culturais do século XX caem por terra seguindo a óptica hilária do diretor. No café da manhã, ele pede cereal e mel, o que gera estranhamento nos médicos, uma vez que, no futuro, gordura pesada, bifes, tortas e calda de chocolate são os alimentos saudáveis. Em certo momento, um médico pede para ele fumar um cigarro dizendo que o tabaco lhe fará bem aos pulmões.

Miles foi despertado de modo ilegal pelos médicos, que temem uma represália do atual governo. Se forem pegos, serão destruídos. O cérebro de Miles (“Meu segundo órgão favorito”, como ele clama) será simplificado eletronicamente. Os rebeldes que resistem são exterminados pelo bem do governo. O que leva a mais uma alfinetada de Allen que afirma que o governo deles é pior que o da Califórnia.  Deste modo, resta aos revolucionários esconder Miles para que as autoridades não o capturem.



Woody apresenta um futuro que, apesar de apocalíptico (uma bomba atômica explodiu em solo americano) não faz jus à imagem pregada pelo cinema. Talvez pela proximidade dos lançamentos, o futuro de Allen remeta bastante ao de Laranja Mecânica, lançado dois anos antes, com suas cores brancas em excesso e aparência límpida em destaque. A direção de arte utiliza amplos espaços abertos de modo a remeter justamente a esse aspecto clean futurista.

Tendo que fugir das autoridades, Miles se disfarça de mordomo biônico, um item bem comum nas casas das altas classes do futuro. A cena em que ele aparece com o aspecto robótico, mas ainda com os óculos característicos de Woody é clássica pelo seu non sense. Vestido de robô, Miles vai parar na casa da dondoca Luna Schlosser (Diane Keaton, na sua primeira atuação sob a tutela do diretor), onde acaba “fumando” o equivalente ao cigarro de maconha no futuro: uma esfera prateada na qual basta tocar para sentir o efeito alucinógeno. Localizado pelas autoridades, Miles foge levando consigo a anfitriã Luna que é convencida pelo atrapalhado dorminhoco a se juntar à revolução na tentativa de destruir o governo despótico.


Apesar de se passar no futuro, todo o filme funciona como uma sátira aos idos do século XX. Allen aproveita cada diálogo para dissecar de forma irônica vários aspectos da história, como na cena em que um historiador pede para que ele identifique certos personagens históricos nas fotos que lhe são apresentadas e ele define cada um ao seu bel-prazer, destilando a ironia habitual, como quando diz que Bela Lugosi, o eterno Drácula, foi prefeito de Nova York e, por isso, ganhou aquela aparência; ou, quando arguido sobre quem era Joseph Stalin, ele o define como um comunista de bigode feio e maus hábitos. Além disso, em uma referência cínica ao escritor Norman Mailer, premiado duas vezes com o Pulitzer, Allen afirma que o ego do jornalista foi doado para pesquisas na Faculdade de Medicina de Harvard.

O Dorminhoco equilibra bem a comédia física, centrada na presença atrapalhada de Miles (observe a cena em que ele escorrega diversas vezes em cascas de banana gigantes), com a de diálogos afiados, como quando o herói encontra um fusca de 200 anos de idade e, ao perceber que o veículo ainda funciona, diz que eles realmente construíam essas coisas para durar. No pára-choque do fusca, um adesivo da Associação Nacional de Rifles, que Miles afirma ser uma organização que armava criminosos para atirarem em cidadãos. Mais uma das tiradas pontiagudas de Allen contra a conservadora sociedade estadunidense.

Uma pena que, no ato final, o longa perca força, uma vez que a química entre Allen e Keaton aqui não funciona muito bem e o diretor prefira investir mais nas gags visuais (que acabam cansando após um tempo) do que nos ácidos diálogos, a verdadeira essência do filme. 

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