quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Entrevista: Cyria Coentro - Gonzaga De pai pra filho



Por João Paulo Barreto

Em seu segundo filme sob a direção de Breno Silveira (o primeiro foi Era uma Vez...,de 2008), Cyria Coentro teve a responsabilidade de viver a mãe de Luiz Gonzaga, uma personagem que oscila entre a doçura da maternidade e a postura firme de uma matriarca familiar no sertão nordestino. Santana, mulher do lendário sanfoneiro Januário, criou Luiz Gonzaga até os 17 anos, quando ele precisou fugir da fúria de um coronel de Exu, no interior de Pernambuco. Ela carregou durante muitos anos a dor por achar que a sua surra foi a responsável pela partida do filho. “Aquela foi uma surra dada para salvar a vida do próprio filho. O fato dela chorar no momento em que dá a surra demonstra isso”, explica Cyria. Santana foi um papel que exigiu um apuro na atuação da atriz baiana, uma vez que não havia muitas cenas na qual ela pudesse desenvolver essa relação entre mãe e filho. Com experiência na televisão e no teatro, Cyria está em cartaz com a peça Los Catedrásticos e fala nessa entrevista sobre como é transitar tão bem entre a comédia e o drama; (falta de) opções para o mercado cultural em Salvador e, claro, sobre Santana e seu filho, Luiz Gonzaga.

Confira o papo!

Olá Cyria. Antes de a gente começar a entrevista, primeiramente eu queria agradecê-la pelas gargalhadas proporcionadas em Los Catedrásticos.

Ah, sim. (risos) Você viu quando?

Há dois meses, no teatro do ISBA.

Recente, então. Bom, fico feliz por você ter gostado.

Bom, aproveitando esse contexto, eu queria te perguntar sobre essa transição da comédia para o drama e vice versa. Em Gonzaga, você interpreta uma mãe do sertão, personagem que sofre pela saudade do filho e tem uma das cenas mais dramáticas do longa. É difícil conciliar o drama com a comédias?

Olha, eu sou uma atriz essencialmente dramática e uma comediante circunstancial. Eu não me considero uma comediante. Por exemplo, Maria Menezes, que é uma grande amiga e minha colega de atuação em Los Catedrásticos. Ela tem perfil de uma comediante. Eu não tenho, Mas eu transito bem na comédia quando eu tenho um respaldo. Mas o meu gênero natural é o drama. Eu tenho mais facilidade com ele.



Alguns críticos de cinema costumam afirmar que os melhores atores são oriundos da comédia. Você concorda com isso?

Eu acho que um ator que faz bem o drama, ele tem grandes chances de fazer bem a comédia. O drama e a comédia são gêneros opostos e muito difíceis. Cada um com a sua dificuldade específica. Mas o drama requer um aprofundamento no sentimento. Pois o ator precisa dessa capacidade de transformar aquele sentimento, vamos dizer, mentiroso, em uma coisa crível, afinal, ele pode não estar sentindo aquilo de verdade. Isso é necessário para que o público não fique apenas assistindo-o fazer o drama, para que o público se emocione junto com ele. Isso para mim é mais delicado do que você descobrir o timing da comédia. Para mim, o segredo do drama é esse: é você transformar esse sentimento em algo crível e, de fato, emocionar o público. O segredo da comédia é você descobrir o timing da piada. São os cliques com os quais você se liga e leva o público junto com você. Claro que o timing da comédia não é algo que seja simples, porque uma pessoa que não tem nenhum traquejo com esse gênero não vai conseguir chegar a esse timing e não vai contar a piada. Mas é uma coisa menos profunda, algo que requer menos sensibilidade, digamos assim (pensativa). Não, não é sensibilidade a palavra. Requer menos aprofundamento, eu vou colocar essa palavra. Por que o sentimento tem que ter um aprofundamento, e a comédia pode estar em um plano mais superficial no qual você pode atingir a plateia. Mas o sentimento se você não aprofunda...

É como se o alcance do timing da comédia fosse mais rápido que o do drama?

(pausa) É, na comédia, se você está no timing certo, o alcance é mais rápido. Se você está com o timing certo, toda a plateia vai te acompanhar e rir. Tem que ser alguém muito mal humorado para não achar aquilo engraçado. E o drama, você transformar aquele sentimento em algo capaz de captar todo mundo, é mais difícil. O alcance do drama pode não chegar a todos da plateia, afinal lá pode ter pessoas que são mais difíceis de se emocionar. Na comédia, se você está no tempo certo, a plateia inteira vai rir. Para fazer a plateia inteira chorar é mais complicado (risos).

As histórias que Luiz Gonzaga contava em relação aos pais são muito tocantes e sensíveis, algo que denota uma relação muito intima que ele tinha com Januário e Santana. Há aquela história da surra que ele levou da mãe quando resolveu desafiar o coronel, pai de sua amada. Nessa, ele fala que apanhou até o cabo da faca se desmanchar. Sua personagem, Santana, é uma mãe do sertão. Uma pessoa que consegue equilibrar bem a doçura da maternidade e o amor pelos filhos com a aspereza e dureza daquele ambiente do sertão. Como foi trazer esse equilíbrio para sua atuação? Afinal, você também é mãe e conhece esse sentimento.

Para mim, essa foi a grande chave e o ponto mais delicado da construção dessa personagem. Ela é, de fato, uma mulher do sertão. As pessoas do sertão são mais secas, ásperas, pela própria condição geográfica. É muito sol na cabeça, é muito calor, as pessoas se pegam menos. Além disso, a rotina de trabalho é muito pesada. A vida é muito dura. Essas condições acabam por tornar o afeto muito singular e diferente do meu, por exemplo. Eu sou uma mãe muito rigorosa. Para tudo tem horário, mas, ao mesmo tempo, eu sou muito amorosa, derretida. Coisa que a Santana não é. E, ao mesmo tempo, eu não via a Santana como uma mãe dura e rígida apenas. Ela tinha uma doçura que eu não sabia exatamente onde colocar. Acabou que eu tentei colocar no olhar. Afinal, ela não tem muita atitude amorosa. E também não demonstra muito calor amoroso em suas falas. Ela é muito seca no texto. E como em todas as histórias, são momentos estanques que são retratados. O filme não conta uma vida, conta momentos. Então, eu não tinha muitas oportunidades dentro do roteiro para construir essa mãe no decorrer do tempo. Eu não tinha tantas cenas para mostrar esses lados dela. Onde ela é amorosa, onde está o carinho, onde esta a dedicação de mãe ou, no outro extremo, onde está a rispidez, a dureza. Então, eu tentei mostrar essa doçura no olhar. A maneira como ela olha para o filho, a maneira como ela o repreende foi como eu resolvi usar isso.



Durante a surra, percebemos que ela está chorando, inclusive.

Sim. E o fato dela chorar nesse momento demonstra que aquela é uma atitude que ela se viu obrigada a ter por ter visto a iminência do seu filho morrer. Aquela é uma surra que ela dá para salvar a vida do filho. Ela está se matando para salvá-lo. Após aquilo, ela não se recuperou. Passou meses sem comer ou dormir direito. Depois que ele foi embora, ela se culpou e sofreu muito com aquela atitude que cometeu. Afinal, ele passou 16 anos fora. O mais curioso é que nada naquela cena estava previsto. Ela não foi ensaiada, não tinha texto no roteiro. E foi uma cena que me pegou de surpresa, pois ela estava escalada para o terceiro dia de filmagem e acabou sendo a primeira que nós rodamos do filme com a minha personagem. Eu cheguei no set e o plano de filmagem era com outras cenas externas, mas por conta do tempo que ficou nublado, acabaram sendo adiadas. Aí nós entramos e fizemos as internas, sendo a primeira justamente essa da surra. Eu me lembro de ter entrado em um rápido desespero, chamei Breno (Silveira, diretor do longa), “Breno, como assim? Eu não estou preparada para filmar essa cena agora. A primeira?” (risos) O texto saiu na hora de fazer a cena. Tudo que eu falo eu não pensei muito antes. Foi algo um pouco no susto e acabou saindo.

Seu segundo trabalho com o Breno Silveira. Começou com o Era uma vez... (2008) e agora se complementa com Gonzaga. Está virando uma parceria?

Ô, parceria abençoadissima, (risos). A gente se conheceu durante os testes que fiz para o Era uma vez... Tive sorte de ser selecionada entre tantas outras atrizes e acabou sendo um encontro muito feliz porque eu sou uma atriz que ama ser dirigida. Eu não sou uma atriz autossuficiente. Eu chego no set com uma proposta, com o texto estudado, mas eu sou como um papel em branco. Venho com o texto estudado e minha compreensão da personagem, mas, ao mesmo tempo, eu venho muito disponível para o diretor. Amo colocar na minha interpretação pedidos do diretor. E o Breno tem uma direção muito carinhosa, muito subliminar. Ele não te fala o que é que ele quer que você faça. É meio como o Zé Celso (Martinez Corrêa, um dos principais nomes da direção teatral brasileira). Eu trabalhei com o Zé no teatro e, claro, são coisas totalmente diferentes, eu não estou comparando os dois, mas eu me senti da mesma forma sendo dirigida no teatro pelo Zé Celso e no cinema pelo Breno. Eles não falam o que eles querem, de que forma eles querem que você fale, qual é o gesto, qual a marcação da cena. É uma direção de imagens, repleta de subtextos e que preenche o ator. Foi uma parceria muito feliz a minha e a do Breno. Eu gostei da maneira como fui dirigida e ele se sentiu confortável ao perceber em mim uma atriz que responde ao estímulo do diretor.

Breno é conhecido por ter em seus trabalhos uma carga bastante emocional. Você acha que isso é um reflexo dessa direção mais calma?

É um reflexo dos tipos de direção dele e dos temas que ele aborda. O tema que permeia todos os filmes do Breno é justamente o poder do amor. Ele fala do amor que nasce nas relações e no poder de transformação desse sentimento. São vários tipos de amor. É o amor de 2 Filhos de Francisco, de um pai pelos filhos. Esse sentimento não é só o bonzinho ou o cor de rosa. Ele também tem seu lado cruel, como a surra da Santana; a infância sofrida dos dois meninos junto ao pai, Francisco; o amor sofrido que nasceu entre o caminhoneiro João e o garoto que pede carona em À Beira do Caminho. Em Gonzaga são vários esses amores. É o amor entre ele e sua paixão de adolescente, entre ele e a Odaléia e, por fim, o amor que é resgatado entre o pai e o filho no final da vida. Enfim, para mim, esse resultado dos filmes do Breno, algo que faz com que eu me debulhe em lágrimas, não que eu seja uma pessoa muito difícil de chorar, mas, pelo amor de Deus (risos), nos filmes do Breno a gente morre, praticamente, de chorar. Essa comoção que os filmes dele causam se deve tanto aos temas quanto a essa forma dele de dirigir, que é muito emotiva. Ele é um diretor que abraça o ator, sabe? As cenas dramáticas que eu fiz em Gonzaga fazem com que ator entre naquele estado. Claro, muitos profissionais podem dizer “ah, eu sou um ator, não senti nada”, mas para você fazer uma cena como a da surra que Santana dá em Luiz, ou a última cena de Era uma vez...,, por exemplo, o ator tem uma entrega naquela emoção que quando o diretor diz “corta!”, aquilo não acabou ainda. O Breno acolhe esse ator até você conseguir se livrar daquela emoção. É o conforto de uma parceria. Eu estou fazendo o filme para ele, então é como se o Breno estivesse agradecendo. Há uma maneira dele se relacionar com os atores que é muito afetiva. E isso se reflete nas atuações e no resultado final do filme.

Você fez parte do elenco de 3 Histórias da Bahia, o filme que reinaugurou a produção do cinema baiano. Hoje, apesar de ainda não ser o ideal, já há uma diferença perceptível na cena cinematográfica daqui. Diretores como Sérgio Machado, Cláudio Marques, Marília Hughes, Pola Ribeiro, Edgar Navarro, Henrique Dantas, João Rodrigo Matos, são nomes que levam para frente a sétima arte aqui em Salvador. Qual a sua opinião em relação ao cinema feito na Bahia atualmente?

Eu ainda acho muito tímido o mercado cinematográfico baiano. Se a gente pensar em Recife, por exemplo, chega a ser um disparate comparar com a produção de lá. A quantidade de investimentos em Pernambuco é muito maior. E é lamentável essa falta de investimento aqui na Bahia. Eu morei no Rio durante onze anos, voltei ano passado para cá e estou muito triste com o Estado da Bahia como um todo. Salvador toda esburacada, tudo abandonado, os teatros não tem subsídios. Eu fiquei em cartaz agora um ano inteiro com um espetáculo de sucesso (Los Catedrásticos) e os jornais, quando vão divulgar a peça, pedem por fatos novos. Meu Deus, o fato novo é justamente esse! Um ano de sucesso com a peça, um grupo que tem 23 anos de estrada. Aqui há uma mentalidade ainda muito do contra. Eu não entendo isso. É como se nem a mídia, nem os governantes, nem a secretaria de cultura estivesse lutando a favor. Cadê esse prefeito? Cadê esse governador? Aonde estão essas pessoas? Fizeram o que pela Bahia? Há um sintoma em Salvador, sabe? Eu não entendo por que a orla daqui nunca teve uma reforma. Não entendo por que não há hotéis, bares, restaurantes por lá. A Barra ser daquele jeito há décadas, aquele Porto da Barra sujo daquele jeito. É uma cidade que é linda, que eu amo, que se eu pudesse escolher, eu moraria aqui, afinal é o lugar eu nasci, onde minha família e grandes amigos vivem. Foi onde eu estudei e criei meus vínculos, mas eu sofro morando aqui, sofro por ser um lugar que não te oferece opções de lazer, que não tem investimentos na área de cultura. O polo de cinema tá dando sinais de vida, mas ainda não tem a força que eu acho que poderia ter. O que não falta aqui é artista talentoso e não é à toa que praticamente todos estão fora. Poucos estão aqui. Afinal, o ator aqui fica sem opção. Então, você tem que sair, tem que ir atrás. Salvador merece um investimento maior.

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