domingo, 11 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva III




Taego Ãwa (Goiás, 2015, 75min) Direção: Marcela e Henrique Borela

Dos mais simbólicos filmes da Mostra Competitiva do Cachoeira Doc 2016, Taego Ãwa registra a luta dos índios Avá na demarcação de suas terras e reconhecimento cultural de seu povo como pertencente àquele lugar, no interior de Goiás.

Munidos de imagens dos índios localizadas em velhas fitas VHS encontradas pelos diretores no prédio da Universidade Federal de Goiás, os irmãos Borela decidem por levá-las ao povo indígena no intuito de compartilhar aquelas lembranças, bem como compreender sua luta mais a fundo.

Trata-se de um filme cuja generosidade e apuro na sua confecção denotam muito do respeito dos cineastas para com aquelas pessoas, uma vez que a abordagem inicial com eles é vista apenas como uma apresentação, um reencontro propriamente dito deles com o seu passado registrado nas fitas. Parte desse passado, inclusive, bastante doloroso ao trazer à tona lembranças da invasão armada que aconteceu em 1973, na qual muitos membros da tribo foram assassinados.

A identidade cultural representada por um sorriso
No observar das imagens, percebe-se um tocante reconhecimento. “Esse é o vovô?”, pergunta uma voz juvenil. “Esse é o meu pai”, observa uma senhora indígena enquanto se admira com aquele reencontro. Um dos personagens exibidos tanto nas imagens de arquivo quanto no período atual mantém viva a tradição de pintar os companheiros de tribo com tinta oriunda do jenipapo. Em um símbolo de resistência cultural, os vemos registrar seus costumes, entre sorrisos de reconhecimento, algo que é brilhantemente captado pelos diretores no momento em que o ancião da tribo, Tutal, tira toda a roupa sob o argumento de não ter vergonha de mostrar seu pênis. Daqueles tesouros fílmicos que surgem para os cineastas na hora e momento certos, ainda mais em uma obra que aborda justamente a questão da identidade indígena.


No aspecto de afirmação e reconhecimento cultural, Teago Ãwa exprime um cuidado crucial em seus registros. Trata-se de um trabalho que, apesar de representar um olhar do homem branco sobre o indígena, não possui os defeitos comuns a certo tipo de abordagem predatória. Longe disso. Ao optar por apresentar as imagens de arquivo àquele povo, captar suas reações e a partir disso trazer à tona uma nova narrativa, Marcela e Henrique Borela acertam por suscitar a discussão sem a necessidade panfletária ou sensacionalista, apesar do tema delicado em sua inserção.  Em um filme que aborda um povo chamado de “índios invisíveis” por conta do modo como ele se inseriu a sociedade branca, além do fato de sofrerem duplamente com o racismo por serem chamados de índios negros, o resgate proposto pelo filme acerta em sua premissa provocativa.

Obra essencial em um contexto de resistência tão imprescindível em tempos de cerceamento de liberdades e direitos como os atuais.

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GRIN (São Paulo, 2016, 41min). Direção: Roney Freitas e Isael Maxakali.

Em um dos depoimentos captados pelos diretores Roney Freitas e Isael Maxakali, Totó, um dos índios que fizeram parte da GRIN - Guarda Nacional Indígena, agrupamento militar criado na ditadura, hoje já idoso, relembra o caso do assassinato sádico de um dos seus companheiros. Forçado a beber leite fervente para, em seguida, tomar água fria, o homem não conseguia comer por conta das queimaduras internas, algo que o leva a adoecer e, consequentemente, morrer.

Trata-se do momento de maior impacto em GRIN, documentário que aborda, a partir de depoimentos dos que presenciaram o período, a criação da tal guarda. Projeto que trazia em sua essência a brutalidade insana dos ditadores, representava de modo oficial a postura desumana e desrespeitosa do Estado diante da cultura indígena. Ao descaracterizá-la de seus costumes e hábitos, retirando-a de seu meio e a colocando sob as vestes do militarismo, a GRIN representava a destruição da identidade de um povo, algo que acabava por ser perpetuado para gerações futuras daquelas pessoas, uma vez que muitos dos bebês nascidos à ocasião recebiam nomes dos militares atuantes no período, a exemplo da alcunha de dos algozes do período, capitão Pinheiro.

Com a presença do experiente documentarista Isael Maxakali, representante direto do povo abordado no filme, a captar os depoimentos, o diretor Roney Freitas, através das marcantes entrevistas dos integrantes da tribo, cria uma narrativa fluída, que denuncia a irresponsável e perversa descaracterização daquelas pessoas. Mantidas sob um a rédea da submissão, eram colocadas reféns até mesmo do modo de consumo capitalista que, excludente por natureza, ainda os colocava em patamar mais inferior, uma vez que os militares criaram uma moeda específica para os índios utilizarem na região, algo que os controlava de modo ainda mais pernicioso.

Através dos depoimentos dos mais velhos da tribo, toda a barbárie pode ser presenciada. Desde os métodos de tortura física, até a forma como Pinheiro se dizia dono daquelas pessoas, algo evidenciado de forma curiosa no depoimento de um dos idosos, Rondon. Em suas palavras, um estranho respeito pela figura de Pinheiro surge, afirmando que o homem protegia os Maxakali. Fica a dúvida acerca de uma possível senilidade ou um comportamento de respeito cego pelo seu opressor, seja por razões de um medo institucionalizado ou por algo que, dada às devidas proporções, se aproximaria da síndrome de Estocolmo. 
Uma cena cujo impacto desnorteia principalmente pela percepção de que a tortura e influência psicológica do branco eram por demais pesadas, algo evidenciado pela afirmação final de Rondon, a de que ainda se considera um soldado.

Um filme cuja reflexão se dá de modo doloroso a partir do momento em que se percebe que a identidade de um povo era retirada não somente através da violência mas, por vezes, intelectual.  

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