quinta-feira, 16 de março de 2017

Jonas e o Circo sem Lona

(Brasil, 2016) Direção: Paula Gomes. Com Jonas Laborda.


Por João Paulo Barreto

Em seu último momento, Jonas e o Circo sem Lona traz uma pergunta feita pelo pequeno protagonista à diretora Paula Gomes: “O final do meu filme vai ser assim, triste?” Ao ouvi-lo, Paula lhe concede um cafuné e uma resposta confortadora: “Esse é o final desse filme, não do seu filme.” Um carinho que denota justamente a cumplicidade de projeto com o seu sujeito de análise. E durante os breves 81 minutos de projeção, é justamente perante a isso que o público se vê. A construção precisa de um personagem de um modo em que a equipe de produção se insere naquele ambiente. Ao subir dos créditos, percebemos ter estado diante de um documentário de criação no qual as barreiras que separam Jonas de seu destino nos são apresentadas, mas é justamente o superar delas o principal intento a ser demonstrado aqui.

Existe uma identificação plena do espectador com Jonas. A câmera de Gomes nos coloca dentro do dia-a-dia do garoto. Convida-nos a participar de sua rotina de férias escolares, quando decide montar um circo no quintal de sua casa. Um circo feito com material oriundo do antigo local onde sua família viveu, e onde sua mãe, que naturalmente se preocupa com o fato de que dedicação do filho é grande com o espetáculo e não tanto com a escola, trabalhou durante a juventude. Não que ela imponha sua vontade de modo ditatorial. O que acontece aqui é o receio natural de pais pelo futuro de seus rebentos. E para ela, o circo não trará nenhum para o seu garoto. Jonas, no entanto, possui aquela arte em seus genes. Algo do qual ele não foge, sendo aquilo o que realmente o move.


Jonas e sua mãe: conflitos e a natural preocupação materna
O esmero do olhar de Paula Gomes ao registrar toda a trajetória do menino Jonas é notável.  Desde a não adaptação a uma escola que o restringe de sua paixão, demonstrando um modelo educacional falho, cujas prioridades, claro, são determinadas pelo mercado de trabalho (o momento em que a diretora da escola se queixa perante a câmera é um achado para o filme), passando pelas experiências marcantes daquela fase, como paqueras e o primeiro beijo, o registro tanto das alegrias quanto das frustrações do rapazinho trazem para o longa metragem um equilíbrio essencial. Isso é perceptível, também, pela opção em não se render ao romantizar da arte circense. A discussão oferecida em Jonas e o Circo sem Lona não visa fantasiar com escapismos lúdicos oriundos daquela arte. Mas, claro, isso não significa dizer que sua magia não se faz presente. No entanto, tal percepção é destinada ao espectador, sem a necessidade que a narrativa venha lhe impor. O que percebemos é o contar de uma história na qual os percalços da infância são colocados em evidência. 

Jonas e o local onde consegue se encontrar
Trata-se de uma fase de descobertas. Uma fase na qual a percepção de uma vocação se fez presente. Jonas se entrega àquilo com tudo o que pode. Seu interesse não é fugaz. Não se trata de algo que logo será suplantado por outra coisa. Seu foco é perceptível. Enquanto outros de sua trupe logo se vêem diante de cobranças e interesses que os fazem se distanciar daquela diversão, para Jonas aquilo é algo que se situa em outro patamar de prioridades. Talvez por isso a decepção o atinja de modo tão doloroso. E, por consequência, ao espectador. E nisso está mais um acerto de Paula Gomes e de seu coletivo no entregar de sua história. Ao atingir o público de modo tão certeiro, ela nos coloca diante do anseio do pequeno Jonas. E o sentimento passa a ser compartilhado. Poucos filmes conseguem esse intento. Jonas e o Circo sem Lona, felizmente e dolorosamente, é um deles.


É para esse tipo de entrega que o cinema existe.

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Entrevista com a diretora Paula Gomes

Paula, Jonas e parte da equipe do coletivo Plano 3 Filmes
Jonas e o Circo Sem Lona é daqueles tipos de filme que ficam com você. Eu o assisti em setembro de 2016, durante a projeção do Cachoeira Doc. Foi exibido no último dia do festival, na décima mostra competitiva. Lembro-me que, durante a cobertura da mostra, escrevi sobre todas as nove competitivas. Fiquei devendo a Paula Gomes um texto acerca de seu filme. Mas não porque não quis fazê-lo, mas, sim, pelo fato de que o impacto do longa, após uma semana intensa de festival, foi por demais intenso. Precisei parar para refletir sobre o filme mais a fundo. Durante a correria da curadoria do Panorama Internacional Coisa de Cinema, não consegui rever o filme, muito menos escrever sobre ele. Mas, volta e meia, voltava a pensar naquela história. Jonas e o Circo sem Lona tem esse poder. É um filme que acompanha o espectador após o término da sessão. Digo isso não somente como um clichê para florear um texto crítico, mas por perceber a identificação que ele gerou. Na infância, muitos sonhos nos motiva. Muitos planos nos frustram. Ao crescer, a nostalgia acaba por nos invadir e, às vezes, machucar. O registro da rotina do pequeno Jonas pelo olhar atento de Paula me fez refletir acerca das escolhas que fazemos e como elas nos acompanham por toda a vida. Para o bem ou para mal (ops, mais um clichê). Perceber que Jonas escolheu bem seu futuro, resolvendo seguir aquilo que realmente o motivava, nos incentiva a seguir passos semelhantes. “Não tem como não ser Jonas e não se identificar neste sentido dos desafios e do que você escolheu para você. Como eu estou conseguindo manter meu sonho vivo, o filme, ao mesmo tempo, é um ato de desejar que ele, Jonas, consiga também. E ele está conseguindo. E isso é muito bom”, afirma Paula Gomes em um dos trechos desse papo.  De fato, não tem como não ser Jonas.

Confira abaixo a conversa na íntegra.

PAULA, APÓS VÁRIOS FESTIVAIS, O FILME FINALMENTE CHEGA AO CIRCUITO COMERCIAL E AO PÚBLICO GERAL. QUAL A SENSAÇÃO?

É uma emoção enorme. A gente fica muito feliz por vários motivos. Porque a caminhada foi longa, foi difícil, mas, também, porque a gente sabe que o nosso problema ainda é essa parte da cadeia. A parte da distribuição. No drama da produção, a gente meio que conseguiu ter um fluxo de uns anos para cá. Com todas as políticas, com a forma como a gente aprendeu a fazer. Então, estrear comercialmente nos deixa realmente muito felizes. Também pela trajetória do filme, porque ele vai poder chegar em vários lugares. São vinte cidades no Brasil. A gente está muito emocionado com isso. E esperamos que as pessoas possam assistir, possam dividir um pouco dessa história com a gente.

VOCÊ ENCERRA UM CICLO. TERMINA A CORRERIA COM FESTIVAIS E ENTRA NO CONTATO COM O PÚBLICO GERAL. VOCÊ TOCOU NO PONTO QUE A DISTRIBUIÇÃO FOI UM DOS PONTOS MAIS DIFÍCEIS EM TUDO ISSO. QUAIS FORAM OS PARCEIROS DE DISTRIBUIÇÃO?

O filme está sendo distribuído pela Vitrine Filmes, através de um projeto que eles têm chamado Sessão Vitrine Petrobras. Um projeto muito bacana que reuniu mais ou menos vinte filmes brasileiros que tiveram destaque no ano passado em festivais. Filmes que foram premiados. Então, eu acho que ir de grupo, ir de galera (risos) fortalece todos os filmes. Eles são lançados um de cada vez neste circuito de vinte cidades. Isso é muito legal.

VOCÊ ACERTA AO FUGIR DE UM FORMATO CONVENCIONAL DE DOCUMENTÁRIOS, ALGO QUE JÁ É BEM BATIDO NO USO DE CABEÇAS FALANTES. VOCÊ, NO ENTANTO, PREFERE ABORDAR A HISTÓRIA DO JONAS DENTRO DA SUA ROTINA, DENTRO DA SUA REALIDADE. COMO FOI ESSE PROCESSO DE ESCOLHA?

Então, eu acho que o filme se encaixa muito bem em um gênero que é o documentário de criação,que ainda não é tão popular aqui no Brasil. No filme, a gente opta por trabalhar muito com o encontro. O documentário ele acontece não porque existe um objeto, mas porque existe um objeto e um sujeito. E em algum momento esses dois se encontraram, as histórias se cruzaram, e, por algum tipo de gesto, de amor, de ódio, do que for, a gente decide viver uma história juntos. Então, a partir do momento em que a gente encara o filme como um documentário de criação, muita coisa fica para trás. Uma suposta objetividade, uma imparcialidade, que a gente sabe que não existe. Eu estou pessoalmente interessada em fazer filmes onde eu esteja envolvida, sabe? Onde muito claramente há um ponto de vista. Onde muito claramente há uma interferência. O filme trabalha isso de uma forma muito honesta. Porque esse era o pacto com Jonas. Porque esse era o pacto com os personagens. Então, a gente entra para viver essa aventura juntos, que a gente não sabe como vai terminar, mas sabe o ponto de partida. Conhece os conflitos que podem surgir, porque foi feito uma pesquisa antes. O Jonas trabalha muito por essa linha. Eu acho sempre mais honesto, mais bacana. Acho até filmicamente mais interessante que quando a gente vá fazer um doc, possamos assumir a equipe. Assumir a interferência. Porque aquela história só aconteceu naquele tempo e naquele espaço daquela forma porque estávamos filmando. Se a gente não estivesse ali, era outra história. Então, nada mais honesto que possamos compartilhar o processo, também.


 HÁ UMA CUMPLICIDADE BEM BONITA ENTRE VOCÊ E O JONAS. O FINAL EU ACHO DE UMA BELEZA ÍMPAR.

Sim, existe uma cumplicidade muito forte. Eu conheço o Jonas há muitos anos. Minha relação com a família 
dele tem dez anos. Desde que eu conheci a mãe dele, fiquei muito próxima.

COMO FOI QUE VOCÊ DESCOBRIU O JONAS?

Há dez anos, a gente ia filmar um curta de ficção junto com o meu coletivo (N.E. O coletivo Plano 3 Filmes). E o curta tinha ver a ver com o universo do circo. E todo mundo perguntava para gente: “Ah, vocês vão fazer um curta felliniano?” E a gente começou a descobrir que tinha uma visão do circo muito presa a Fellini. Muito presa a um universo mais fantástico e a gente queria retratar um circo mais real, nordestino, mais da gente. E aí entramos no carro e viajamos para pesquisar. Íamos visitar três circos em um final de semana. Meio que procurando locações, procurando informações. E foi tão incrível que essa viagem de três circos em um final de semana virou três meses e trinta e cinco circos pesquisados. Na época, eu escrevi muito. Pelo fato de eu reunir muito material, acabei sendo convidada a assumir o Núcleo de Artes Circenses aqui da Secretaria de Cultura. E a família de Jonas morava em um desses circos que  eu visitei. Foi quando conheci a família dele, acompanhei quando eles deixaram o circo e se estabeleceram na Região Metropolitana de Salvador. De certa forma, eu vinha acompanhando o crescimento de Jonas. Até que um dia ele me liga e fala: “Olha, eu tenho uma novidade. Agora eu sou dono de circo. Tenho meu próprio circo e queria te convidar para assistir ao espetáculo.” Aí eu  fui com os meninos do coletivo à casa dele e, nos fundos, tinha um circo armado que ele construiu com o que sobrou desse antigo circo da família. Aquelas arquibancadas velhas, pedaços de lona, uns figurinos. Quando eu cheguei, fiquei muito encantada e já senti que naquele quintal ali tinha um filme. Só não sabia ainda qual era esse filme. Isso eu só descobri depois. Mas tive imediatamente essa sensação de que havia uma história muito legal ali.



HÁ UMA RIMA INTERESSANTE AO OBSERVARMOS O JONAS COMO UM ARTISTA LIBERTÁRIO AO FAZERMOS UMA COMPARAÇÃO DELE COM OS ARTISTAS ORIUNDOS DO AUDIOVISUAL BRASILEIRO E, PRINCIPALMENTE, BAIANO. O MODO COMO ELE É REGRADO PELAS AUTORIDADES DE SUA FAMÍLIA E ESCOLA, QUE TENTAM IMPEDI-LO DE SEGUIR SUA ARTE. VOCÊ TEM ESSA IMPRESSÃO, TAMBÉM?

Tenho, sim. Eu tenho, sobretudo, uma identificação muito profunda com ele. Com a sua história. E me inspira muito no sentido que ele tinha um sonho que era o circo. Ele saiu do circo e conseguiu, sozinho, mantê-lo vivo, ali no quintal de sua casa. E isso não tem como não me inspirar. Porque é a mesmo no meu lugar, no cinema que eu faço. Aqui, eu também dependo, como eu falo no filme, dos meus amigos para fazer. Também é um sonho que sempre tem conflitos, que sempre tem obstáculos. A gente brinca aqui no coletivo que somos todos Jonas. Porque também somos esses meninos que sentavam no fundo da sala de aula. E que também eram cobrados dessa forma. E que até hoje, fazendo cinema em um mundo que te diz todos os dias: “seja médico, seja advogado, faça concurso, tenha um emprego.” Não tem como não ser Jonas e não se identificar neste sentido dos desafios e do que você escolheu para você. Como eu estou conseguindo manter meu sonho vivo, também, o filme, ao mesmo tempo, é um ato de desejar que ele, Jonas, consiga também. E ele está conseguindo. E isso é muito bom.

A CENA DO CONFLITO COM A DIRETORA DA ESCOLA DE JONAS FAZ AQUELE SERMÃO É BEM SIMBÓLICA NESTE SENTIDO.

Sim. O tempo todo a gente enfrentava algum conflito. Porque como a gente estava na escola todos os dias, nós viramos os intermediários. O Jonas aprontava muito. Então, toda vez que isso acontecia, ao invés de ligar para a mãe dele, a diretora ligava para mim, porque eu estava ali, mais próxima. E estes conflitos, ao invés de nos afastar, nos aproximaram muito da dela. Porque ela estava dentro de uma lógica que eu, naquele momento, não concordava, mas que eu conseguia entender. Porque também é muito difícil para o professor, dentro do sistema em que ele está, ser o único individuo que enxerga, que não quer castrar, que quer libertar. Então, também, é difícil quando você entende o sistema inteiro. Foi uma surpresa muito gratificante. Porque a gente filmou muito tempo. Foram dois anos. Quando terminamos, dois anos e pouco depois que tínhamos começado, os personagens já não eram mais os mesmos. Todo mundo tinha amadurecido. Todo mundo tinha um ponto de vista diferente. E teve um dia que ela falou para mim que ela percebia naquele momento, naquele tempo ali, que não só Jonas era ruim para a escola. Mas que, também, a escola era ruim para Jonas. E isso foi maravilhoso. Porque Jonas se transformou, ela se transformou, a gente se transformou. Foi um filme muito intenso e muito transformador para todo mundo.

QUAL É O PRÓXIMO PROJETO AGORA, PAULA?

A gente acabou de filmar um longa de ficção chamado Filho de Boi. É do nosso coletivo. Neste, eu sou produtora e co-roteirista, porque a gente se alterna nas funções. E quem dirige é o Haroldo (Borges) e o Ernesto (Molinero). Filmamos no sertão da Bahia, um processo que foi muito modificado depois de Jonas. É um roteiro mais antigo. Mas depois filmamos Jonas, transformamos o projeto inteiro. A gente está muito apaixonada pelo documentário e buscamos ferramentas para deixar essa ficção com um perfil mais relacionado com documentário. Por exemplo, optamos trabalhar com não atores. Fizemos uma pesquisa enorme para encontrar o protagonista. Entrevistamos 1500 meninos, todos do sertão da Bahia, todos de escola pública e moradores de áreas rurais. E trabalhamos com Fátima Toledo (conceituada preparadora de elenco que se destacou em filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite). Fátima super topou o projeto. Ela veio e fez uma super preparação neste sentido. E o mais legal é que o Jonas fez o filme. Dessa vez, como ator. E também aprendendo uma nova função. Ele quer fazer Cinema após terminar seu último ano da escola. Ano que vem quer fazer vestibular para Cinema. Aqui, ele quis aprender mais e trabalhou, também, como segundo assistente de câmera.



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