terça-feira, 6 de junho de 2017

Neve Negra

(Nieve Negra, ARG, 2017) Direção: Martin Hodara. Com Ricardo Darin, Leonardo Sbaraglia, Laia Costa.


Por João Paulo Barreto

Algumas feridas não se cicatrizam jamais, diz a frase clichê. Essa definição é bem apropriada para a vida de Salvador, o atormentado ermitão que vive isolado na propriedade de sua família localizada na patagônia argentina. Remoendo um passado traumático, o homem sobrevive da caça e mantém-se aquecido do modo como pode, mesmo que há muito suas magoas não possam mais deixar qualquer calor penetrá-las. Tais sentimentos estão prestes a inflamar por conta da visita de sue irmão, Marcos, que, junto com sua jovem esposa grávida, vai até Salvador levando as cinzas do pai de ambos. A intenção é depositá-las no mesmo local onde o irmão caçula deles foi enterrado quando criança. Tal intento, no entanto, despertará mais dor e ódio do que qualquer possibilidade de uma recepção calorosa por parte do ermitão.

Neve Negra cria em seu ambiente inóspito de frio congelante e ventos afiados a metáfora perfeita para o que rege a natureza familiar daqueles dois homens. Criados sob a régia tirânica e sádica de um pai violento, os dois rapazes, o garoto caçula e a irmã adolescente são apresentados ao público em eficientes flashbacks, inseridos em cena de um modo surpreendente ao utilizar o som diegético de cada ambiente, seja ele o ranger de uma escada, o barulho de uma surra de cinto sendo aplicada ou simplesmente os passos na neve. O modo orgânico como as revelações são feitas a partir do retorno de cada membro daquele ciclo a um passado doloroso, repleto de culpa e arrependimento, leva o espectador a compartilhar com aquela família desintegrada toda aquela mágoa.

Marco e sua irmã encaram as feridas da memória
Aqui, o interesse em lucrar com as terras em uma possível venda que deixaria todos milionários não passa nem perto das intenções de Salvador. Para ele, o segredo escondido naquele inóspito ambiente e sua própria permanência no lugar soam como uma penitência, algo pelo qual ele precisa pagar por se considerar responsável pela morte do irmão caçula, baleado durante uma caçada na floresta.

Para seu personagem, o sempre eficiente Ricardo Darin consegue trazer uma densidade assombrosa, algo que, através de uma postura curvada e de olhar cansado, mas sempre atento, coloca a construção de Salvador como a de uma besta fera, quase que uma criatura animalesca, alguém que pode até se expressar através de poucas palavras, mas cujo silêncio, mesclado a um constante senso de observação e necessidade de viver isolado são mantidos justamente como um modo de proteção de uma fúria que precisa ser sufocada.

Salvador: mágoas, arrependimento e ódio escondidos no isolamento
Não demora, claro, para tal fúria explodir e as razões para isso acontecer nos chega de modo a provar que o passado de um homem sempre volta para assombrá-lo. A Salvador e Marcos não resta muita coisa a não ser o lamento de uma vida que se preferiu levar tentando fugir dos próprios erros, da própria inércia e de uma passividade supreendente. Para o homem a viver solitário com seus próprios fantasmas e arrependimentos a assombrar-lhe, ao menos, alguma recompensa lhe é concedida no final. Mesmo que não pareça assim ao espectador, friso. Já para Marcos, mesmo com um filho a caminho e possibilidade de fortuna a acompanhar-lhe, o que resta, surpreendentemente é bem menos do que ficou para o irmão mais velho.

Com a licença da repetição, o passado sempre volta a assombrar o homem. No caso de Marcos, este não tardará.

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