terça-feira, 12 de setembro de 2017

Entrevista: Sadek, de Tour de France

ENTREVISTA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE, DIA 09/09/2017

Rapper francês Sadek fala do desafio de atuar ao lado de Gérard Depardieu em Tour de France


Com um título que traz alusões geográficas ao adentrar e aprofundamento em solo francês, Tour de France aborda a afirmação de um jovem perante suas próprias raízes culturais, tanto no âmbito de suas origens quanto na assimilação plena de sua música. Em paralelo, trata-se de um filme que, em tempos de um estado de exceção e ascensão de uma nova direita xenofóbica e preconceituosa, garante uma reflexão pertinente sobre a imbecilidade de um pensamento retrogrado e racista no que se refere ao mundo islâmico.

O premiado rapper Sadek, aclamado na França como uma das revelações no estilo, surpreende com uma atuação sincera que não se deixa enfraquecer diante do desafio de atuar ao lado de um nome como Gérard Depardieu. Muito do vemos na tela em termos de atuação, ele afirma, é retirado de sua própria adaptação em abordagens da polícia. “Tive que aprender a atuar por conta dos desafios que encontrei nas ruas”, afirma.

No Brasil para divulgar Tour de France, o jovem falou sobre o rap e sobre a boa química com Gérard Depardieu.

Por João Paulo Barreto

Tour de France traz em sua essência uma reflexão bem pertinente acerca da marginalização do rap diante de uma sociedade elitista que não considera o tipo de música como arte. Na França, um país berço de diversas culturas clássicas, como é ser um rapper?
Eu lido muito com a condescendência. As pessoas tendem a ser muito condescendentes comigo e com os rappers. Para mim, os músicos de rap são, antes de tudo, poetas. Gênios e poetas. Eu acho um absurdo quando eles dizem que nós não temos cultura. O fato de não compartilharmos da mesma cultura que eles não quer dizer que nós não a possuamos. Essas pessoas admiram poetas que viveram há três séculos. E é engraçado observar que, na maior parte deles, tais poetas eram pessoas que viviam se drogando, viciados mesmo. Se você for enxergar por um ponto de vista técnico, aqueles poetas não têm o mesmo tipo de dificuldade que nós temos hoje. Nós temos que adaptar nossas palavras, nossas rimas, em um ritmo de música. Nós temos que gerir essa emoção musical que, para mim, é a linguagem da alma. Nós utilizamos maneiras de criação que são absolutamente geniais e que me emocionam muito. Eu li os dois. Eu li os poetas e li os textos e as letras dos rappers. E, para mim, o rappers são verdadeiros gênios. Então, que se foda Molière. (gargalhadas)

O rapper e ator, Sadek, em visita ao Brasil
Em uma das cenas, vemos o personagem de Depardieu destilar racismo e preconceito contra os rappers e contra o mundo árabe. E Far’Hook, seu personagem, o faz refletir acerca dos absurdos que ele está dizendo. Você considera essa cena algo que pode ser inspirado em suas próprias experiências pessoais?
Sim, totalmente. Porque, para mim, é uma questão totalmente social. Um exemplo que pode ilustrar isso e essa condescendência que falei antes aconteceu nessa minha visita ao Brasil. Ontem, eu estava em um jantar e uma produtora brasileira se aproximou de mim, pois naquele momento haviam dito a ela que eu sou rapper. Ela veio caminhando até mim, gesticulando uma postura que ela achava que seria de um rapper. Lá vinha ela com uma linda bolsa de grife, uma roupa de grife e, sei lá, ela deve ter sentido que podia criar asas (risos). Com toda condescendência possível, começou a gesticular daquele modo caricato, à maneira como supostamente um rapper se expressa para ela. Isso define bem a imagem que as pessoas desta classe dita superior possui dos rappers.

E como se deu o momento em que Depardieu faz um rap no filme? Você o ajudou de algum modo?
Foi algo bem espontâneo. O Gérard Depardieu é um cara que fez piada de tudo. Então, quando o personagem dele vem caçoar do rap daquele modo, é diferente do modo como ele mesmo faz. Porque nos momentos de pausa, quando conversávamos e ele vinha brincar, imitando um rapper, eu percebia que não tinha algo de malícia, de condescendência ou maldade. Durante as filmagens, ele vinha até mim às vezes e falava alguma coisa no meu ouvido, e aí cantava um rap baixinho para mim. E olha que ele faz um bom rap, também (risos). Eu vi que realmente não tinha condescendência da parte dele. Só posso dizer Viva Gérard. (risos)

Você ficou nervoso em trabalhar com Gérard Depardieu?
Não, de jeito nenhum. Eu sou uma pessoa que acredita em Deus. Então, eu penso assim, se eu estou aqui, é porque esse é o meu lugar. Ele vai ao banheiro do mesmo modo como eu vou,. (risos)

Mas, convenhamos, ele é um ator com uma trajetória incrível. Apesar de uma fase menor nos últimos anos, trabalhou com nomes pilares do cinema francês. De repente, você está diante dele e precisa atuar à altura. Como foi esse processo?
Claro, há uma disciplina. Para mim, ele é um monstro sagrado do cinema francês. Um mestre. E como eu nunca quis, na verdade, ser ator, eu estava ali para o que der e viesse. O que tivesse que acontecer, iria acontecer. Claro, eu e Gérard não temos a mesma idade. E eu sou uma pessoa que aprendeu a respeitar os outros. Eu digo o que eu penso, mas sempre com muito respeito. Nossa comunicação acabou sendo muito boa porque eu o respeitava. Ele, claro, uma pessoa com uma trajetória imensa, eu, um iniciante, mas havia muito respeito entre nós. Respeito de ideias.

Sadek e Depardieu em cena de Tour de France

O rapper Mos Def, atualmente conhecido como Yassin Bey, faz uma pequena participação no filme. É uma cena bem simbólica na qual ele lhe concede uma benção como um representante de uma nova geração de rappers na França.
Foi algo muito realista. Algo que me tocou, muito. O Mos Def é uma pessoa que me inspira muito no rap. Só de falar dele agora, eu fico arrepiado (mostra o braço com pelos eriçados). Eu me lembro que o Rachid (Djaidani, diretor do filme) me perguntou quem eu queria para fazer aquela cena. E eu não tive dúvidas que teria que ser o Mos Def, pelo respeito e admiração que eu tenho pelo trabalho dele. E algo curioso que aconteceu foi que, quando eu havia sugerido o nome dele para aquele papel, a produção ficou tentando entrar em contato com ele, mas ninguém estava conseguindo. Durante muito tempo estávamos tentando convidá-lo e nada. Aí, coincidentemente, o Clément Animalsons, que foi quem fez a música do filme, três dias antes de começar as filmagens, entra em um restaurante em Paris e encontra com Mos Def. Perguntou para ele se ele queria fazer. Ele estava lá com a esposa e aceitou o convite.

Você conhece muitos rappers brasileiros?
Ouço muito o saudoso Sabotage, que era um cara incrível. Nessa visita, eu escutei, em São Paulo, um pouco dos Racionais MCs e do Criolo, de quem gostei muito.  Gosto muito dos atores e filmes brasileiros, aliás. No cinema brasileiro, eu observo um leque gigantesco de possibilidades e atores fantásticos. Para mim, Wagner Moura não fica a dever em nada a Al Pacino.

Depardieu e Sadek: descobertas e superação de preconceitos
Alguma obra preferida no cinema brasileiro?
Eu acho Cidade de Deus uma obra prima. Eu fiquei pouco tempo no Brasil. Mas durante este período, eu conheci alguns lugares que me fizeram refletir sobre a necessidade de se fazer mais filmes que trouxessem uma reflexão acerca da realidade nas favelas, acerca da pobreza perpetuada pelo Estado. Filmes como este, uau, é algo que faz parte do patrimônio da filmografia mundial. Foi muito importante. Abordar a violência ao redor das pessoas que vivem na favela. Quando era “pobre” na França, eu morava em um lugar que tinha água corrente, eletricidade, mas era considerado um local pobre. E eu já fazia coisas erradas para poder sentir que eu era alguém, que eu poderia fazer alguma coisa. E a pobreza cultiva duas coisas. A obscuridade ou a luz. Tendo oportunidades, a pessoa pode se sentir iluminada por algo. Pela criatividade. Pela música. Eu creio que se tivesse crescido aqui nas favelas, eu acabaria me tornando ou uma pessoa muito má, muito ruim, ou então uma pessoa muito iluminada e criativa.

Após Tour de France, você já tem outros projetos de atuação. A experiência fez você se tomar gosto pela profissão?

Sim, totalmente. Já iniciei, inclusive, um novo trabalho ao lado de Vincent Cassel e Romain Duris. Chama-se Fleuve Noir e deve estrear no ano que vem. Quando o convite para fazer Tour de France surgiu, eu me senti um tanto inseguro, mas fui ganhando confiança. Após terminar, eu cheguei a achar a ideia de ser ator como algo inatingível, algo de sonho mesmo. Mas graças a esses encontros, a essa experiência trocada com pessoas como Depardieu, como Rachid Djaidani e o próprio Cassel, eu percebi que nada é inatingível, nada é inacessível. E mesmo que possa parecer um pouco pretensioso de minha parte, eu posso dizer que me considero um bom ator, eu sinto que sou um bom ator. Ao contrário de outros atores profissionais, que estudaram de modo teórico e prático as artes dramáticas, a minha experiência na atuação eu fui conseguindo nos controles de polícia. Nas vezes que eu cheguei a ser preso, eu tive que ser um ator e isso me evitou de ser ter problemas com os policiais muitas vezes. Eu fazia um papel de Rain Man, que o Dustin Hoffman fez (risos). Sem as câmeras, eu seguia aquela linha várias vezes quando a policia me interrogava e me abordava nas ruas por razão alguma. 

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