quinta-feira, 16 de março de 2017

Os Cowboys

(Les Cowboys, França, 2015) Direção: Thomas Bidegain. Com François Damiens, Finnegan Oldfield, John C. Reilly.


Por João Paulo Barreto

Os Cowboys, longa de estreia do diretor Thomas Bidegain, roteirista por trás do doloroso Ferrugem e Osso, de 2012, traz em seu título um curioso uso para a expressão que o batiza. Em uma clara alusão a Rastros de Ódio, a obra francesa atualiza questões como xenofobia e racismo para um contexto do século XXI. No entanto, aqui, substituem-se os comanches por muçulmanos extremistas e o sequestro físico e forçado pelo intelectual e religioso. Ao invés de índios a observar de cima das rochas do Monument Valley, extremista caminham em lajes enquanto enquadram seu alvo.  O resultado traz a mesma dor de John Wayne ao precisar resgatar a sobrinha, só que representada pelo pai vivido por François Damiens na busca pela filha, que deixa a França ao ser doutrinada pelo namorado mulçumano e convencida a participar de ataques 
terroristas.

Em sua construção, o filme apresenta diversos elementos que aludem ao estilo que seu título sugere. Porém, tais elementos não se relacionam à ambientação clássica que o espectador se acostumou a ver em westerns, mas se adéquam a um terror insano, representado pela inércia de um pai que percebe ter perdido a filha não somente de forma física, mas, bem antes disso, de forma sentimental, quando ela abdica de qualquer contato com a família por conta da fé cega na qual foi levada a acreditar. Junto ao filho George (Finnegan Oldfield), Alain (Damiens) passa a dedicar sua vida ao resgate da filha, a quem começa procurar através de pistas que vai seguindo através do contato com supostas células terroristas. Aos poucos, a dureza áspera que existe nos dois cowboys do título cede lugar ao desespero.

Derrocada física e psicológica: Alain, com o filho George, em busca de sua filha
A perda da filha mais velha se torna a derrocada de toda uma família. A dor da ausência transforma a figura austera e durona de Alain em pouco mais que uma sombra do que ele foi, algo que passa a influenciar, também, seu filho George, que se vê ligado à busca da irmã da mesma forma obcecada que o pai. Nesta rendição, o rapaz abre mão de sua juventude, passando a se dedicar integralmente à localização da irmã, algo que, curiosamente, o leva, a partir de acontecimentos trágicos, a construir sua própria vida, identidade e personalidade.

Trata-se de um filme cuja maior reflexão está na discussão acerca da xenofobia que ele oferece. Como em determinada cena, quando uma mulher, em solo francês, é espancada somente pelo fato de usar um hijab (espécie de xale) típico da mulher mulçumana. E quando, em um tempo no qual um cidadão assumidamente xenofóbico ocupa o maior cargo do executivo estadunidense, a reflexão oferecida por Os Cowboys ganha ainda mais força.

George conta com uma inesperada ajuda na sua busca
Aqui, vemos um título que alude a um gênero tipicamente americano referenciar uma obra na qual a reflexão vai justamente contra a corrente de ódio e separação preconizada pela política dominante atual. Não à toa, o único personagem americano do filme (vivido de forma soturna por um excelente John C. Reilly) trata-se de um oportunista mercenário que se infiltra na cultura mulçumana para facilitar seus interesses escusos. 

Nada mais próprio à função exercida por seu país desde muito tempo.

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Entrevista com Finnegan Oldfield

O ator durante a visita a São Paulo em 2016
Finnegan Oldfield esteve no Brasil em 2016, ocasião em que divulgou Os Cowboys durante o Festival Varilux de Cinema Francês, no Rio de Janeiro e São Paulo. Filme atual em relação à situação do Estado Islâmico e a adesão de jovens europeus à doutrina de terror preconizada pela organização, Os Cowboys, apesar de ter sua história centrada no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, traz uma reflexão precisa para o que acontece no velho continente (principalmente na França) nos últimos anos.

Sobre esses aspectos da obra e outros assuntos, Finnegan Oldfield conversou com o blog Película Virtual.

OS COWBOYS ME REMETEU EM DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS AO CLÁSSICO DE JOHN FORD, RASTROS DE ÓDIO.

Sim, há diversas semelhantes. Mesmo não sendo uma refilmagem e eu não tendo utilizado o Rastros de Ódio em minha pesquisa, Thomas (Bidegan, diretor) me mostrou outros filmes na construção de Os Cowboys, como Cidade das Ilusões (Fat City), de John Huston, que não chega a ser um western, mas é uma obra que aborda a transmissão de uma pessoa para outra. É disso que fala o filme, mas utilizando todo esse viés e os códigos todos dos filmes de faroeste. Foi exatamente isso que ele quis fazer. Utilizando essa referência nos filmes de faroeste, como o uso dos planos abertos de montanhas e paisagens, por exemplo. Como no momento em que ele está fumando um cachimbo da paz junto aos talibans, em outra cena vemos pessoas a emboscá-los de cima de um prédio como se fossem índios nos desfiladeiros. A partir de um certo momento, o filme passa a ser um faroeste, principalmente quando já o vemos com seu revolver em punho e na cintura.

SEU PERSONAGEM NO FILME É BEM SOLITÁRIO. COMO SE DEU A SUA CONSTRUÇÃO?

Eu li muitas vezes o roteiro. Foram muitas conversas com o Thomas (Bidegain) sobre a personagem e suas ideias de como ele queria que esse adolescente se transformasse em um homem, em um cowboy. E isso foi muito interessante para o trabalho de ator e foi um desafio que eu encontrei para fazer esse papel.

A FRANÇA VEM PASSANDO POR UM PERÍODO CONTURBADO EM RELAÇÃO À POLÍTICA E A GUERRA CONTRA O EXTREMISMO DE ORIGEM RELIGIOSA. COMO FOI ABORDAR ESSE TEMA NO FILME?

Curiosamente, no caso de Os Cowboys, o filme foi feito antes dos atentados ao Charlie Hebbo, antes dos atentados de novembro de 2015. Isso o torna um filme ainda mais atual. Outros diretores realizaram trabalhos com temas relacionados e acabaram pagando o preço de não ver suas obras sendo lançadas por conta do contexto. Os Cowboys foi lançado na França em 15 de novembro de 2015, dois dias após os atentados. A dúvida que surgiu na época foi na possibilidade de lançá-lo ou não. Decidimos levar adiante a data justamente para não deixar que o terrorismo começasse a dar as ordens no cinema. Eu concordo com o Thomas Bidegain (diretor de Os Cowboys) quando ele diz que é preferível assistir a uma obra como essa do que aos noticiários que ficam mostrando sem parar esse assunto. É preferível ver um filme como esse do que os canais de notícias que exibem sem parar imagens dos atentados sem se aprofundar nos fatos. Concordo que a gente tem que estar informado sobre o que acontece, mas os filmes possuem uma outra maneira de contar a história.



EXATAMENTE. INCLUSIVE, ACHO QUE O FILME TEVE UMA CORAGEM IMPRESSIONANTE DE ABORDAR UM TEMA TÃO DELICADO QUANTO A PRESENÇA DE CÉLULAS TERRORISTAS NA FRANÇA. E ISSO JUSTAMENTE NA ÉPOCA DOS ATAQUES EM PARIS.

Foi complicado. Podemos dizer que esses fatos acabaram nos alcançando. A realidade alcançou a ficção do filme. Quando fomos filmar na Índia, todos nos diziam para ter cuidado por conta de riscos de terroristas e, enquanto nós estávamos lá filmando, os atentados ao Charlie Hebdo aconteceram. Bem ali, no centro de Paris. E decidimos continuar filmando. E essa foi a mesma atitude quando chegou a hora de lançar o longa

QUAL A SUA POSIÇÃO COMO CIDADÃO FRANCÊS DIANTE DESTE MOMENTO? É POSSÍVEL UMA COMPARAÇÃO COM A POSTURA DOS ESTADUNIDENSES APÓS O 11 DE SETEMBRO?

É uma difícil comparação por conta da diferença de escalas dos acontecimentos em relação a França e aos EUA. A nossa vida passou a ser pontuada por atentados. A gente lembra do 11 de setembro, dos atentados a Londres, a Madrid, ao Charlie Hebdo. E, ao mesmo tempo, estamos distantes disso tudo. É um pouco disso que o filme fala, também. No filme, quando o personagem vê na TV as torres gêmeas em chamas, ele se sente como se recebesse um cartão postal da irmã pedindo por ajuda. E a gente na consegue entender o que significa  enquanto não vivemos isso na casa da gente.

O FILME ABORDA UMA QUESTÃO DELICADA QUE É A SEDUÇÃO DO ESTADO ISLÂMICO PARA COM JOVENS ÁRABES E EUROPEUS. GEROU CONTROVÉRSIAS NA OCASIÃO DO LANÇAMENTO E PRODUÇÃO. DO MESMO MODO, ELE ABORDA PONTOS RELACIONADOS A PRECONCEITOS, RACISMO E XENOFOBIA. COMO SE DEU ESSA ABORDAGEM DO ROTEIRO?

O filme, na verdade, apresenta uma questão da emancipação dessa jovem. Talvez, se ele se passasse em outra época, como os anos 1980, ela talvez tivesse seguido para outro lugar, como Londres, morar em um cubículo e ficar se drogando. E a historia começa antes disso, em 1997, quando ainda não era comum que os jovens se juntassem ao Estado Islâmico. No fundo, é uma história sobre pessoas comuns que vão se sentir aspiradas por essa agitação e confusão que acontece no mundo. Em relação ao racismo, é verdade que o pai é bem aquela figura francesa que tem aquela postura xenofóbica e alguns comentários racistas acerca de imigrantes. Na metáfora do filme, o pai acaba considerando que essas pessoas sejam como os índios. Já o filho, não. Ele passa a ver os estrangeiros de uma maneira muito mais aberta. E isso é o que fará dele um cowboy, um herói. O Thomas queria fazer um filme sobre essa abertura de espírito. Sobre a mistura de raças. Sobre como é possível aprender as lições dos seus ancestrais e de como o conhecimento passa de uma geração para outra.



EM SEUS FILMES ANTERIORES, HÁ UMA CONSTANTE ABORDAGEM DE CUNHO SEXUAL. COMO SE DERAM ESSAS ESCOLHAS?

Não cheguei a ver muitos filmes franceses com temáticas sexuais e não há muitos que sigam essa vertente. Em relação às minhas escolhas, são temas interessantes. Por isso eu aceitei fazer esses filmes. Para Mineurs 27, o que me interessou foi como uma pessoa consegue crescer tendo sido vitima de abusos, como ela consegue superar isso. Bang Gang seguiu o mesmo questionamento de como os jovens vivem essa liberdade sexual e experiências nas quais eles podem erra e em seguida se corrigir e superar tudo isso. Principalmente a visão que as outras pessoas têm disso em tempos nos quais as redes sociais são tão ativas.

QUAIS SÃO OS SEUS PRÓXIMOS PROJETOS?

Já estou com um novo filme pronto, dirigido por Bertrand Bonello (diretor de Os Amores da Casa de Tolerância e Saint Laurent). O filme se chama Nocturama e aborda um grupo de jovens de esquerda que colocam bombas em Paris. São jovens que não percebem muito bem o que estão fazendo, inconsequentes que começam a perceber que fizeram algo muito errado e começam a perceber a gravidade de seus atos. É quando o filme começa a ser algo que se passa entre quatro paredes.  Esse roteiro foi escrito antes de todos os atentados e se chamava antes Paris é uma Festa, mas precisou ter seu título modificado.

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