quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O Piano que Conversa

(Brasil, 2017) Direção: Marcelo Machado. Com Benjamim Taubkin.



Por João Paulo Barreto

A rigor, documentários musicais seguem à risca uma fórmula que pode ou não ser bem sucedida. Tal estrutura se baseia em uma série de depoimentos acerca de um tema, de uma banda ou pessoa específica ou de um disco marcante. Tais falas são geralmente intercaladas por imagens de arquivo do objeto de pesquisa, shows e cenas familiares. Este é o lugar comum dos documentários musicais. Não que seja um erro seguir este padrão. Só para citar dois excelentes: Searching For Sugarman, sobre o músico Sixto Rodriguez, e Living in the Material World, documento sobre a vida de George Harrison, com Scorsese capitaneando, acertam em suas construções, mesmo se baseando nesta direção. No entanto, quando um realizador ousa fugir deste enquadramento, é quando as verdadeiras surpresas se apresentam ao espectador.

No caso de O Piano que Conversa, vencedor do Prêmio Petrobrás do Festival In-Edit Brasil, essa riqueza de possibilidades exploradas é o que salta aos olhos (e ouvidos) do público. Trata-se de uma proposta ousada: apresentar um documentário acerca da música, usando o piano como norte, mas sem se basear em falas.  Tendo o instrumento como chave e sem qualquer diálogo ou depoimento para a câmera, o diretor Marcelo Machado constrói gradativamente uma narrativa através desta união, apresentando um leque surpreendente de possibilidades nos caminhos encontrados ao optar apenas pela música para levar pela mão o seu público.

Benjamim Taubkin durante apresentação que integra o filme
Nesta missão, ele acompanha o experiente pianista Benjamim Taubkin, que se encontra com músicos de diversas partes do mundo, construindo um diálogo entre o piano e os mais variados instrumentos. Sem discursos, o filme deixa que quem o assista perceba como será guiado por aquela narrativa. E o que encontramos é a já citada comunhão de sons e de povos. O pianista se apresenta com profissionais do Brasil, Israel, Moçambique, Polônia, Bolívia e Coréia do Sul. Todos os encontros são inseridos na tela de forma orgânica, calma, fazendo o espectador perceber a cumplicidade daquelas pessoas apenas através de seus sorrisos, cantos e toques musicais.

“Eu passei muito tempo ensaiando e pensando como fazer esse filme. Neste período, me aproximei do Benjamim, ouvindo-o tocar e pensando em possibilidades. O que o eu percebi é que a música instrumental tem um caráter universal. Mesmo tendo algumas canções cantadas, notei que aquela era uma oportunidade incrível para poder privilegiar a essência da música. Com isso em mente, a ideia era se afastar da palavra, se afastar das entrevistas, dos depoimentos, que são umas características fortes dos documentários musicais”, explica o diretor Marcelo Machado.

UNIÃO DE INSTRUMENTOS

Para Benjamim Taubkin, criar esse diálogo através da música não era algo tão difícil em sua posição de instrumentista. “Em minha vida, quando estou tocando, eu acho que expresso coisas que são mais difíceis de expressar em palavras. De alguma forma, sinto que há uma comunicação que vai direto para a música. Que é uma linguagem dela. Durante o projeto, essa sensação de que tal linguagem estava prevalecendo era clara. E eu me sentia muito bem com isso”, explica. Com a não inserção de diálogos, o filme valoriza essa comunicação, extrapolando-a para um nível ainda maior, quando, por exemplo, une instrumentos de diferentes culturas (no caso, um berimbau e de uma cítara coreana) em uma mesma mensagem.

O pianista junto ao percussionista israelense Itamar Doari
O diretor Marcelo Machado explica que “nessa cena, se você prestar atenção, verá que o timbre da cítara tocada por aquele musicista da Coréia e o do berimbau dialogam de forma linda. O berimbau, um instrumento rústico, de apenas uma corda, comparado à cítara, com 25 cordas. Há algo do encontro de algo ao mesmo tempo antigo e sofisticado com o elemento rústico do berimbau, mas não por isso menos rico”.

MONTAGEM APURADA

Um grande passo para tornar aquela narrativa fluída, sem descambar para o monótono, era a montagem. Para tanto, o cineasta contou com a experiência de Joaquim Castro, que já havia trabalhado em outros dois documentários musicais que surpreendiam por sua estrutura fora dos padrões.

“Após assistir ao filmes Jards, sobre o Jards Macalé, e Dominguinhos, ambos montados pelo Joaquim, eu percebi um olhar bastante sensível que ele tinha para essa construção. E ele não assina somente a montagem, mas, também, o desenho de som, junto com o Rafael Benvenuti”, salienta o diretor.

Neste aspecto técnico do filme, o do desenho de som, reside uma de suas principais riquezas: a construção de uma narrativa através de seus raccords, que é a união de elementos (sonoros, neste caso) que geram uma continuidade para o filme, uma estrutura em sua linguagem. Com tal percepção, o espectador se surpreende ao ver o barulho oriundo de uma ferramenta a lixar um piano migrar para o som de um caminhão que acolherá aquele instrumento na rua de uma cidade como São Paulo, onde todos os sons colaboram para uma cacofonia. Do mesmo modo, em outro cenário do filme, uma fazenda onde o grupo Clareira toca ao ar livre, o diretor e montador optam por ligar os sons oriundos de um chocalho bovino, para o som do toque de mãos em palhas de um telhado, seguindo para o barulho oriundo de uma fogueira.


Participação das cantoras bolivianas
“Essa ideia dos sons inseridos vem de algo que eu e o Benjamim tínhamos planejado fazer, que era abordar um documentário sobre essa transformação dos sons em música. Essa cacofonia, os sons da cidade, com os sons rurais, tudo contribuiu. Havia essa proposta de mostrar a criação da música através de ruídos, algo que, para mim, que passou a adolescência ouvindo o mestre Hermeto Pascoal, sabia que não era algo muito incomum. Sempre aprendemos com esses mestres aqui. Que desses ruídos era possível fazer música”, salienta Marcelo.

ALMA DO PIANO

Com o título a destacar principalmente a presença do piano em cena, o filme casa aos seus sons imagens do instrumento em uma ambientação repleta de simbolismo. É o caso quando o diretor opta por mostrar o funcionar de um piano por dentro, algo que remete à ideia de introspecção do músico. “Para mim, esses momentos trazem essa analogia do pianista que mergulha para dentro, sabe? Que busca em sua introspecção algo que o mova ao tocar, algo que vem de dentro, mesmo ”, completa Marcelo.

Para Benjamim, essa introspecção se relaciona justamente com o que foi dito por ele acerca de conseguir se expressar mais facilmente com a música do que com as palavras. O pianista, no entanto, em tempos xenofóbicos, ratifica uma mensagem ainda mais importante do filme: a de respeito por outros povos e culturas. “Nestes encontros, buscamos um contato verdadeiro com outras culturas. Buscamos conhecer a música e ter um diálogo com ela. O som gerado é algo comum aos dois lados. É uma descoberta e nós aprendemos muito”, afirma Benjamim. Para se transmitir respeito, nem sempre são necessários diálogos. Muitas vezes um sorriso sincero basta. O filme traz isso de sobra.


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