segunda-feira, 26 de março de 2018

Mostra Tiradentes 2018 - Navios de Terra, de Simone Cortezão

Tragédia de Mariana é destaque em 'Navios de Terra', 
exibido em Tiradentes



O mar vermelho que abre Navios de Terra, longa de estreia de Simone Cortezão, choca pela lembrança recente dos resultados da tragédia ocorrida com o Rio Doce em 2015, ocasião em que uma barragem da Vale cedeu, devastou municípios, matou pessoas e arrasou com todo ecossistema local. O resultado da chegada dos dejetos ao mar, após destruição total do rio, abre a proposta fílmica de reflexão trazida pela cineasta de forma a anunciar que tal fato não deve ser esquecido. E não há como. Suas marcas são deveras dolorosas para se deixar cicatrizar.

No filme, o primeiro longa a abordá-la, a tragédia não funciona como pano de fundo. Mas é trazida como referência dos acontecimentos atrelados ao modo predatório com que a mineração age nos locais de exploração, visando o lucro da exportação, passando por cima de povos e deixando para trás os traumas. É como uma sombra a perseguir seus personagens e o espectador, ciente de sua lembrança. ”A história de Navios de Terra já estava escrita há muito mais tempo. Bem antes do que aconteceu em 2015, em Bento Rodrigues. Mas inserir a tragédia no filme era inevitável”, afirma a diretora durante o debate na Mostra Tiradentes de Cinema. A reflexão proposta por seu roteiro, no entanto, foca na mudança física das montanhas entre continentes, algo que leva décadas de mineração para acontecer, mas que os resultados negativos são sentidos diariamente pelas pessoas que vivem ao redor desses lugares.

Uma dessas pessoas é Rômulo (vivido pelo ator Rômulo Braga), um ex-operário da mineração que, agora, trabalha como marinheiro nos navios de carga a levar containeres com minérios extraídos das montanhas brasileiras em direção ao oriente. Soturno, ele reflete em silêncio acerca das mudanças que seu trabalho propõe. Físicas e psicológicas. Afetado por elas, resolve buscar as montanhas do outro lado, no destino oriental. Na viagem de dias, ele troca relatos e experiências com a pequena tripulação do cargueiro. Dentre eles, um jovem de ascendência oriental que lhe fala acerca das montanhas no país de destino. Obstinado em conhecê-las, Rômulo segue aquele caminho de transição, algo que simboliza do mesmo modo a mudança física das montanhas entre um continente e outro.

Rômulo Braga no papel do atormentado ex-minerador e atual marinheiro

Filmado com não atores, tripulantes reais da embarcação, o filme traz momentos como o diálogo entre um deles e o personagem de Rômulo. Na conversa, um ataque de piratas durante a passagem do homem pela costa da África é trazido à tona. ”Ele vieram, causaram o terror, levaram tudo que podia e nos deixaram apenas com a roupa do corpo”, como o homem de meia idade enquanto mostra fotos do ocorrido ao jovem marinheiro. “Foi um diálogo, um relato real que ele quis nos contar. Lembro-me de não querer exibir as fotos violentas do ocorrido, pois a intenção não era de chocar. Mas o fato de poder compartilhar esse fato no filme marcou bastante”, relembra Simone.

O filme acaba, assim, gerando uma eficiente metáfora para a tragédia acontecida em Bento Rodrigues. A pilhagem, o terror, a retirada de tudo, a ação predatória acontecida durante anos pela mineração só se equipara com a realizada pelos piratas que invadem o navio. Tanto em meio ao oceano, quanto durante décadas de irresponsáveis e criminosas ações burocráticas, o crime é o mesmo. A violência é a mesma. As sequelas, dolorosamente iguais em ambos exemplos.


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