quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Fome

(Brasil, 2015) Direção: Cristiano Burlan. Com Jean-Claude Bernardet, Ana Carolina Marinho, Francis Vogner.


Por João Paulo Barreto

Em Fome, o diretor Cristiano Burlan nos convida a adentrar na vida de um morador de rua, a caminhar junto a seus passos desvairados, a seguir pelos mesmos caminhos sem direcionamento das ruas de São Paulo, percorrendo a esmo aquelas esquinas como se a tentar encontrar seu próprio caminho. Inicialmente, pensamos se tratar de alguém, de fato, em busca de um norte, principalmente pelo modo eficiente como os travelings e os planos sequência são utilizados. Não obstante, tal personagem busca justamente o contrário: ele busca se perder cada vez mais.

Interpretado com intensidade pelo professor, escritor, teórico, crítico e ator, Jean-Claude Bernardet, uma das instituições do estudo do cinema no Brasil, o morador de rua de sotaque estrangeiro é apresentado inicialmente apenas como mais um a viver sem um teto fixo, sem uma rotina especifica, sem um lugar que ele possa, realmente, chamar de seu. É um personagem que nos causa reflexão. Que leva o espectador a refletir acerca da invisibilidade do ser humano nas grandes metrópoles, acerca da necessidade que as classes em situações mais confortáveis possuem de se verem obrigadas a se importar com tais indivíduos na esperança não de demonstrarem-se generosas, mas apenas na intenção de cumprir um protocolo de benevolência falso e hipócrita. Em certo momento, uma discussão do personagem com um casal de bons samaritanos que lhe oferece restos de um jantar denota muito bem isso.

Sem destino: buscando a redenção através do vagar pelo nada
E o sem teto vivido por Bernardet refuta justamente essa condição. Ele não almeja ser “vitima” da caridade alheia. Ele não precisa viver na auto piedade de quem está em situação mais confortável que ele. Seu desejo é encontrar um sentido para sua vida justamente no mergulho na sarjeta, no alcance da plenitude que somente a sujeira e a completa ausência de posses parece lhe conceder. Amigável em determinado momento, resolve ajudar uma estudante em sua pesquisa social, respondendo-lhe questões planejadas e de cunho acadêmico. Ao quebrar aquele ritual trazendo o domínio para si e cantando uma canção em francês que rememora de sua infância, o homem entrega um vestígio do que ele já foi. Algo que, pelo visto, lhe faz sentir certa falta. Um breve sinal de algo que o atormenta, mas que ele evita deixar transparecer.

A estrutura inicial escolhida por Burlan ao apresentar seu filme como uma mescla documental e de ficção traz força para o resultado final. Nos depoimentos dos moradores de rua, ouvidos pela estudante para sua pesquisa, falas sinceras são captadas, problemas alheios são compartilhados e uma pertinente face do filme começa a se desenhar. Tal face está na ideia de que, da mesma forma que a ajuda dispensada de modo supostamente caridoso serve como meio protocolar e egoísta de se cumprir um ritual perante a sociedade, a pesquisa acadêmica executada pela estudante serve apenas como um modo de se usar e descartar aquelas pessoas. Algo que é corroborado, apesar da maneira frágil de se levar o espectador pela mão, em um belo discurso ao final do filme.

Conflito de acadêmicos: aluno e professor se reencontram 
Curiosamente, Fome utiliza a construção do personagem de Bernardet de modo a brincar com a empatia do espectador. Tal elemento é colocado à prova em um diálogo intenso entre um ex-aluno que reconhece o sem-teto como seu professor do tempo da faculdade. Destilando violência e sarcasmo em cada palavra proferida, os dois discutem a ideia adotada pelo professor de se alcançar o verdadeiro conhecimento ao se permitir perder tudo. Vivido pelo crítico e pesquisador Francis Vogner, o ex-aluno nos entrega uma face até então desconhecida de arrogância que o atual sem-teto possuía quando ainda se considerava parte da sociedade. A amargura se torna palpável.

Na representativa cena em que vemos o sem-teto se banquetear na comida que encontra no lixo e que lhe aplaca a fome, um sincero oferecimento de ajuda lhe é oferecido e, surpreendentemente, aceito. Talvez a mais eficiente corroboração de Fome esteja na ideia de que, de fato, nenhum homem é uma ilha.  




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