quarta-feira, 21 de junho de 2017

Ao Cair da Noite

(It Comes at Night, EUA, 2017) Direção: Trey Edward Shults. Com Joel Edgerton, Christopher Abbot, Carmen Ejogo, Kelvin, Harrison Jr.


Por João Paulo Barreto

Exemplo de uso sagaz da construção narrativa de modo enxuto e econômico, Ao Cair da Noite é daqueles filmes que conseguem dominar a atenção do público com muito pouco. Porém, esse pouco, longe de ser um adjetivo a diminuir a obra, define bem a eficiência do diretor e roteirista Trey Edward Shults na criação de sua história e dos elementos que a circundam na intenção de causar desconforto e tensão ao espectador sem a necessidade de manipulá-lo de modo barato com sustos fáceis ou personagens inúteis. Tudo aqui tem sua medida exata.

Desde as cenas iniciais, quando vemos pessoas usando máscaras de gás e luvas a se despedir de um debilitado, moribundo e gravemente ferido idoso, já começamos a montar as peças para o entendimento daquela realidade. Sem necessidade de narração over, flashbacks ou diálogos expositivos, percebemos a atual situação daqueles personagens e o quão urgente é a necessidade deles se protegerem do mundo ao seu redor.

As pistas são colocadas à mesa e a narrativa é tão bem construída em sua economia, que rapidamente dominamos aquele entendimento. Percebemos que um vírus fatal e altamente contagioso matou boa parte da população da terra, tornando as pessoas reclusas, fazendo-as voltar a caçar para sobreviver e lutando contra predadores humanos. Porém, diferente de outros exemplares que abordam a realidade pós apocalíptica, Ao Cair da Noite prefere focar não no resultado de um planeta devastado e em como este se encontra no seu estado de caos, mas, sim, no enquadramento e no desenvolvimento psicológico de seus três isolados personagens centrais, um pai, sua esposa e filho adolescente, e em como a paranóia pode dominar seus atos.

Paul estuda Will para saber se este merece sua confiança
A unicidade de Paul, Sarah e Travis é quebrada com o surgimento de um invasor em busca de comida. Will é rendido, amarrado e suas respostas convencem Paul a ajudá-lo a buscar sua esposa e filho pequeno, supostamente isolados milhas de distância dali. Em mais outra prova do foco certeiro de seu roteirista, as repostas para quem é aquele homem que surge dentro do ciclo familiar de Paul nunca são propriamente respondidas, deixando a dúvida para espectador administrar, como quando ele hesita em dar uma resposta rápida durante um momento de pânico ou quando se confunde nas informações passadas anteriormente acerca de sua família.

Neste jogo psicológico, percebemos haver algo de errado dentro daquele suposto equilíbrio, no qual a desconfiança e a paranóia começa a surgir como elemento desestabilizador. Porém, a derrocada daquela pretensa paz acontece não por razões relacionadas à perda dessa confiabilidade ou qualquer intenção clichê de inserir uma guerra psicológica entre seus protagonistas, mas, sim, por puro desespero a tomar lugar do pragmatismo pregado pelo personagem de Paul, vivido de modo calculado por Joel Edgerton. Desespero que logo volta a ser suplantado pela frieza pensada dois passos à frente, mas que não o impedirá de, também, sofrer a mesma dor que se vê obrigado a infligir naqueles que ameaçam sua família.

As regras de convivência são definidas
Utilizando o espaço confinado de modo a desenhar a sensação de segurança dos seus personagens, Shults parece brincar com as possibilidades que aquele confinamento insere na construção e na proximidade daquelas pessoas estranhas. Observe, por exemplo, a escolha do diretor em tornar as paredes inúteis no que tange à privacidade, uma vez que qualquer sussurro naquela casa pode ser escutado por todos. Em um mundo onde a união ainda pode ser um modo de sobrevivência, a desconfiança nunca deixará de ser um “porém” para aquelas pessoas estranhas entre si. E naquele novo universo, qualquer ideia de sobreviver vem atrelada a essa união. Para ela existir, no entanto, não pode haver segredos. E que modo melhor de ilustrar isso do através de uma casa onde não existe privacidade? 

Com longos enquadramentos em personagens centrais, exibindo suas nuances e tensas faces em meio à reflexão, o longa desenha seu desfecho trágico para o espectador de modo gradativo. Até seu momento final, Ao Cair da Noite mantém-se fiel à sua proposta pragmática de analisar o sofrimento humano. É com regozijo que vemos os créditos subirem e percebemos que a dor da perda e a aceitação, aqui, suplantam qualquer necessidade de apelo superficial dramático.



terça-feira, 6 de junho de 2017

Neve Negra

(Nieve Negra, ARG, 2017) Direção: Martin Hodara. Com Ricardo Darin, Leonardo Sbaraglia, Laia Costa.


Por João Paulo Barreto

Algumas feridas não se cicatrizam jamais, diz a frase clichê. Essa definição é bem apropriada para a vida de Salvador, o atormentado ermitão que vive isolado na propriedade de sua família localizada na patagônia argentina. Remoendo um passado traumático, o homem sobrevive da caça e mantém-se aquecido do modo como pode, mesmo que há muito suas magoas não possam mais deixar qualquer calor penetrá-las. Tais sentimentos estão prestes a inflamar por conta da visita de sue irmão, Marcos, que, junto com sua jovem esposa grávida, vai até Salvador levando as cinzas do pai de ambos. A intenção é depositá-las no mesmo local onde o irmão caçula deles foi enterrado quando criança. Tal intento, no entanto, despertará mais dor e ódio do que qualquer possibilidade de uma recepção calorosa por parte do ermitão.

Neve Negra cria em seu ambiente inóspito de frio congelante e ventos afiados a metáfora perfeita para o que rege a natureza familiar daqueles dois homens. Criados sob a régia tirânica e sádica de um pai violento, os dois rapazes, o garoto caçula e a irmã adolescente são apresentados ao público em eficientes flashbacks, inseridos em cena de um modo surpreendente ao utilizar o som diegético de cada ambiente, seja ele o ranger de uma escada, o barulho de uma surra de cinto sendo aplicada ou simplesmente os passos na neve. O modo orgânico como as revelações são feitas a partir do retorno de cada membro daquele ciclo a um passado doloroso, repleto de culpa e arrependimento, leva o espectador a compartilhar com aquela família desintegrada toda aquela mágoa.

Marco e sua irmã encaram as feridas da memória
Aqui, o interesse em lucrar com as terras em uma possível venda que deixaria todos milionários não passa nem perto das intenções de Salvador. Para ele, o segredo escondido naquele inóspito ambiente e sua própria permanência no lugar soam como uma penitência, algo pelo qual ele precisa pagar por se considerar responsável pela morte do irmão caçula, baleado durante uma caçada na floresta.

Para seu personagem, o sempre eficiente Ricardo Darin consegue trazer uma densidade assombrosa, algo que, através de uma postura curvada e de olhar cansado, mas sempre atento, coloca a construção de Salvador como a de uma besta fera, quase que uma criatura animalesca, alguém que pode até se expressar através de poucas palavras, mas cujo silêncio, mesclado a um constante senso de observação e necessidade de viver isolado são mantidos justamente como um modo de proteção de uma fúria que precisa ser sufocada.

Salvador: mágoas, arrependimento e ódio escondidos no isolamento
Não demora, claro, para tal fúria explodir e as razões para isso acontecer nos chega de modo a provar que o passado de um homem sempre volta para assombrá-lo. A Salvador e Marcos não resta muita coisa a não ser o lamento de uma vida que se preferiu levar tentando fugir dos próprios erros, da própria inércia e de uma passividade supreendente. Para o homem a viver solitário com seus próprios fantasmas e arrependimentos a assombrar-lhe, ao menos, alguma recompensa lhe é concedida no final. Mesmo que não pareça assim ao espectador, friso. Já para Marcos, mesmo com um filho a caminho e possibilidade de fortuna a acompanhar-lhe, o que resta, surpreendentemente é bem menos do que ficou para o irmão mais velho.

Com a licença da repetição, o passado sempre volta a assombrar o homem. No caso de Marcos, este não tardará.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Mulher Maravilha

(Wonder Woman, EUA, 2017) Direção: Patty Jenkins. Com Gal Gadot, Chris Pine, Robin Wright, Connie Nielsen, Ewen Bremner.



Por João Paulo Barreto

Lembro-me que, mesmo ainda criança, sem um pensamento crítico formado e facilmente suscetível às manipulações emocionais dos filmes, uma frase proferida por Christopher Reeve na sua encarnação definitiva de Kal-El, em Superman II, de 1980, me marcou bastante quando o assisti em meados da mesma década. Nesta cena específica, após constatar a destruição sádica e assassinatos cometidos pelo general Zod, vivido por Terence Stamp, o herói diz, em um sentimento de dor, “pare, não faça isso com as pessoas.” Isso definia bem o espírito da criação de Jerry Siegel e Joe Shuster, que no saudoso Reeve encontrara sua face eterna.

Sentimento semelhante voltou a acontecer, mas, claro, em uma situação que tendia inicialmente para uma análise crítica mais fria, que buscava se prender mais a um distanciamento analítico e menos a uma influência emocional. Mas, confesso, foi inevitável experimentar algo que remetia àquela mágica sensação que o longa de Richard Donner me causou há quase trinta anos.

A heroína durante a invasão à terra de ninguém
“Eu escolho acreditar no amor.” Essa é a frase proferida pela heroína no clímax do filme. Por mais que venha a soar como uma novela do horário das sete e com dublagem, essa linha de diálogo, dita no momento em que o filme nos apresenta, é o que define a criação da protagonista e sua trajetória até aquele momento. Ao subir dos créditos, Mulher Maravilha deixa-nos com a sensação de ser um filme não de ação descerebrado, calcado apenas em sequências explosivas (ainda bem que Snyder não dirigiu), mas, sim, uma obra sensível em uma mensagem antibélica, e que, finalmente, traz uma super heroína como papel principal.

E que papel! Desde seu desenvolvimento inicial, o roteiro de Allan Heinberg demonstra um cuidado criterioso na apresentação da personagem e no ambiente em que a mesma surge. Um dos pontos de acerto está no modo dinâmico e econômico como toda a introdução na paradisíaca Themyscira consegue dar conta de exibir a trajetória de Diana, desde sua infância (acerto incrível na escolha da atriz mirim, inclusive) e adolescência, até seu ponto de ruptura, quando precisa deixar o local para conter a ira do deus da guerra, Ares. Sobre a ilha, impressiona o desenho de produção, bem como a direção de arte, conseguindo recriar uma ambientação das lendas gregas de modo a inserir o espectador na trama e na existência do local até aquele ponto, com uma bela utilização de frames animados para nos contar aquela história.

Rainha Hippolyta e sua presença de autoridade
Sem contar a própria caracterização das personagens femininas do lugar, com destaque para Robin Wright e Connie Nielsen, que conseguem colocar a postura centrada de suas decisões pragmáticas e militares de modo a conter seu emocional. E está na presença de Nielsen um dos mais belos momentos, quando se despede da filha que parte para a guerra. Nada mais humano e doloroso quando milhares morrem lutando em terras estrangeiras muitas vezes em nome de tiranos, e tudo o que deixam para trás com suas mães é saudade. Ver isso numa deusa soma ainda mais para o filme.

Ainda em Themyscira, as sequências de treinamento, bem como o embate entre soldados armados e arqueiras em cavalos são um aperitivo para o que veremos na principal batalha de guerra, quando Diana encara a terra de ninguém entre as trincheiras aliadas e as linhas inimigas na Primeira Guerra Mundial, ou quando utiliza o laço dourado como um elemento visualmente incrível nas cenas de luta. Indefectível ao unir os efeitos sonoros com as cenas explosivas de ação, juntamente com uma trilha deveras eficiente (sendo esse desequilíbrio de elementos técnicos um dos problemas mais gritantes em Batman Vs. Superman), o filme de Patty Jenkins consegue imprimir marcas reconhecíveis em suas opções de enquadramentos, como quando vemos o mesmo artifício de exibir a imagem lateralmente invertida na fuga de dos personagens pilotando um avião ou quando vemos Diana cavalgar adentrando em uma floresta.

Steve Trevor resgatado da morte por uma deusa
Caprichando no humor ao discutir as questões femininas em relação ao personagem de Chris Pine, bem como na química entre o elenco secundário encabeçado por um sempre bem vindo e hilário Ewen Bremner (o eterno Spud, de Trainspotting), Mulher Maravilha consegue, ainda, a proeza de desenvolver um vilão cujas motivações possuem uma profundidade incomum em filmes baseados em histórias em quadrinhos. 

Com sua argumentação relacionada ao fato de que, apesar de ser o deus da guerra, Ares se exime da culpa pela natureza bélica do mundo de uma forma tão pertinente que fica difícil discordar de suas ideias. Ao fazê-lo, ele culpa justamente o ser humano, provando o embasamento calcado no real e proposto pelo roteiro, algo que, convenhamos, desde a versão do Coringa de Heath Ledger não se via em um vilão.

Com um final que coloca uma discreta sugestão que insere a heroína na luta contra o terrorismo (no caso, em Paris), Mulher Maravilha mostra que é possível, sim, uma super heroína como protagonista. Após tantas versões do Batman ou do Super, já estava na hora do cinema dar uma chance a um ícone feminino dos quadrinhos clássicos.